Foram muitos e muitos meses de medo, vendo pacientes sendo intubados, muita gente morrendo e vários colegas adoecendo física e mentalmente. Dias de trabalho muito pesados e noites de sonos mal dormidos, com receio de um vírus tão desconhecido quanto imprevisível.
Se todos nós vivemos dois anos absolutamente extenuantes desde que a Covid-19 assolou o mundo, imagine para um médico de UTI, que lidava com a doença diariamente?
Durante a pandemia, o trabalho de Viviane Cordeiro Veiga, assim como de seus demais colegas intensivistas, ganhou uma evidência sem precedentes.
Se antes a população em geral desconhecia o papel deste especialista, hoje ele está cada dia mais esclarecido. Esses profissionais estiveram diretamente na linha de frente, atuando com os pacientes mais graves durante o pico da doença.
“Até não muito tempo atrás, as pessoas achavam que a UTI era um lugar onde se ia para morrer”, diz ela.
“Hoje a gente sabe que, nas grandes e melhores UTIs, 80% a 90% dos nossos pacientes têm alta. A Covid trouxe esse entendimento da população sobre o intensivista – que muitas pessoas nem sabiam o que eram.”
A Covid trouxe também uma rotina desgastante ao extremo – um estudo conduzido no começo de 2021 pela PEBMED, healthtech de conteúdo para médicos da Afya Educacional, em 2021, apontou que 89% dos profissionais de saúde que atuam na linha de frente do combate à Covid estavam psicologicamente esgotados.
“Vimos muitos de nós se contaminando e se afastando, e tivemos que nos ajudar muito, porque de repente a escala ficava desfalcada”, conta Viviane.
“No começo, achamos que a pandemia ia durar poucos meses, assim como todo mundo. O tempo foi passando e os profissionais em um ritmo de trabalho cada dia mais insano. Passamos a ver muito burnout, começamos a perder colegas.”
Coordenadora das UTIs da BP – A Beneficência Portuguesa de São Paulo e atual presidente da Sopati (Sociedade Paulista de Terapia Intensiva), ela conversou conosco para contar sobre o seu dia a dia, as inovações em sua especialidade e os aprendizados da pandemia.
Como é a rotina de um intensivista?
Nossa rotina é não ter rotina, porque cada dia a nossa dinâmica é diferente, o fluxo de pacientes pode mudar, são sempre graves e claro que estamos vindo de uma fase onde tivemos um agravamento muito maior dos nossos internados.
Chegamos a ter 70, 80% dos nossos pacientes intubados, no respirador, que é muito diferente do que a gente tem na UTI em condições normais – 20% a 30%.
É importante o olhar do médico intensivista porque é um olhar multiprofissional, ele vai estar trabalhando com enfermeiros, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, farmacêuticos, nutricionistas, psicólogos. Hoje não dou mais plantão, mas, como coordeno unidades, continuo trabalhando de final de semana, meu telefone ainda toca de madrugada de vez em quando… Então temos uma parte administrativa e burocrática além de uma prática assistencial.
Quais são as boas práticas de uma UTI atualmente?
Uma boa prática de UTI é juntar todo esse grupo de profissionais que mencionei e passarmos juntos nos leitos para uma tomada de decisão conjunta. Esse olhar é muito específico e, dentro da terapia intensiva, é muito forte.
O país tem 6.500 intensivistas, mas estudos apontam que o ideal seria 40 mil. Por que a UTI não atrai tantos médicos?
Acho que há muitos mitos em relação à especialidade. Tem muita gente que acha que vai viver de plantão todo o tempo. Faltava também o conhecimento e a valorização da especialidade que estamos agora conseguindo. Ainda temos muita disparidade em relação a leitos e médicos intensivistas, então precisamos também trabalhar localmente, em regiões que têm mais essa falta. Quanto mais conhecimento da área tivermos, melhor.
Como é a formação necessária para seguir nessa área?
Hoje temos residência de terapia intensiva, que surgiu faz poucos anos. Algumas especialidades podem fazer uma segunda residência de terapia intensiva, como cardiologia e anestesia – pode ser feita uma subespecialização depois, por exemplo.
Nossa realidade no Brasil ainda é de falta de profissionais intensivistas, encontramos muita gente dando plantão dentro das UTIs sem a formação necessária.
Aqui na BP oferecemos uma residência que é realizada pelo MEC [Ministério da Educação] com algumas vagas de estágio oferecidas pela AMIB [Associação de Medicina Intensiva Brasileira].
Como mudar esse cenário da falta de formação necessária?
Temos trabalhado muito dentro das sociedades e associações para fortalecer essa especialidade entre os estudantes de medicina, para que a gente tenha cada vez mais profissionais preparados para esse ambiente, que é, sim, bem complexo e específico. Estamos em um processo de transição. Antes a terapia intensiva era uma segunda escolha, e agora estamos no processo de fomentar isso, de que as pessoas queiram fazer essa especialidade, que não é fácil. É preciso gostar de adrenalina, saber lidar com cada dia diferente e nunca estar na zona de conforto.
Quais são as principais dificuldades da área? E os bônus?
Acho que, de contras, a gente tem ainda muita heterogeneidade como falta de leitos de UTI em determinadas regiões do Brasil, falta de números de profissionais capacitados, não dá dentro da unidade o número de intensivistas suficientes. A questão da remuneração pode ser negativa também – e sempre estar nessa adrenalina pode ser positivo ou negativo, a depender de cada um.
Falando dos prós, acho maravilhoso levantar da cama todo dia muito cedo para fazer a diferença na vida de uma pessoa, ter a recompensa de um familiar vir te visitar na terapia intensiva.
Também gosto dessa necessidade de atualização constante, de ver a clínica médica como um todo, receber pacientes de diversas especialidades. Ainda tenho também a felicidade de ter residentes que fazem do ambiente um lugar de troca muito grande.
O fato de atuar em uma equipe multidisciplinar de uma forma tão intensa acaba trabalhando melhor suas relações humanas, a empatia, o respeito.
E tira aquela coisa do passado de que a decisão é só do médico. Isso é tão ultrapassado… A decisão tem que ser do grupo. E você tem que trazer o paciente junto também, para ele participar do tratamento.
Como é lidar com a morte? Há como se preparar para isso?
É muito importante essa pergunta porque isso não quer dizer que a gente não possa se envolver com o paciente, com as histórias, que a gente é um bloco de gelo. Não é isso, mas é começar a se autocuidar. Eu acho que o tempo e a maturidade nos ajudam muito, você vai trabalhando melhor esse tema.
Mas temos também psicólogos que nos acompanham e hoje, diferentemente de pouco tempo atrás, as faculdades estão vendo que é necessário capacitar o médico a dar notícias ruins, nós não éramos preparados para isso.
Agora as universidades já estão dando cursos de comunicação e de cuidados paliativos. Alguns hospitais têm programas que oferecem apoio de cuidado à segunda vítima, que é o profissional de saúde.
Ninguém gosta de perder um paciente, é como se fosse um fracasso.
Mas, quando estamos em um ambiente de terapia intensiva, nem sempre manter vivo é dar dignidade para a pessoa. Às vezes, dar conforto e entender o que o momento pede, até onde ir para não levar a uma distanásia – que é dar medidas fúteis para uma morte iminente – é o melhor a se fazer.
Como foi o dia a dia dos intensivistas no pico da pandemia. Quais foram as principais dificuldades e aprendizados?
Foi muito difícil. Tivemos aquele primeiro momento que era o novo, em que toda a equipe sentia muito medo, com profissionais sendo afastados por causa do psicológico, com medo de pegar a doença e passar pros seus familiares. Não sabíamos absolutamente nada sobre o vírus.
Tivemos que aprender com muita troca de informação, e aprendemos a fazer cada vez mais a boa medicina, com sedação, com uso racional de antibióticos etc.
Vimos muitos de nós se contaminando e se afastando, e tivemos que nos ajudar muito, porque de repente a escala ficava desfalcada. No começo, achamos que a pandemia ia durar poucos meses, assim como todo mundo. O tempo foi passando e os profissionais em um ritmo de trabalho cada dia mais insano.
Passamos a ver muito burnout, começamos a perder colegas.
A união entre intensivistas, essa troca de informação e experiência, isso nunca esteve tão forte. Conversávamos com pessoas de outros hospitais para saber como estava lá, como determinada medicação tinha performado. Mas foi um período de muito estresse, sem hora pra chegar em casa, afastados das nossas famílias, com o emocional muito abalado.
Teve algum momento que foi mais marcante?
Não foi um só, foram vários. Teve dia que eu tinha mais de 90% dos pacientes intubados, isso era muito desgastante. Um momento que me marcou muito também foi quando faleceu um médico de dentro do meu hospital – isso mexe e faz você pensar que a doença está muito perto da gente.
Chegou um momento em que começamos a internar muitas famílias juntas, isso também mexia muito com a gente.
Mas os momentos bons também existiram, pacientes muito graves que saíam de alta e ligavam pra gente, quando começamos a ter muita alta. Foi um período de muitos picos de emoção.
Você chegou a contrair a doença? Como foi lidar com o esgotamento físico e mental?
Tive em abril de 2020 a doença, mas de uma forma leve. Mantive distanciamento dos meus pais, e eu e meu marido – que também é médico intensivista – buscávamos válvulas de escape: não deixar de fazer atividade física, que a gente adora, tomar nosso vinho, ter momentos durante nosso dia que sejam bons, assistir filmes e ler coisas fora da medicina.
Mas eu confesso que tinham dias que eu chegava tão cansada que eu só queria ver minha cama.
Tomamos também, obviamente, todos os cuidados, máscara, álcool gel, vacinamos assim que tivemos a disponibilidade… Mas acho que achar válvulas de escape que funcione para cada um é fundamental.
Você passou pela temida situação de ter que escolher qual paciente salvar?
Não cheguei a passar por essa situação, mas participei dessas discussões, os hospitais se prepararam para isso. Então desenhamos fluxos, participei de discussões na AMIB sobre ter essas diretivas que precisavam ocorrer. Mas eu, felizmente, não tive que passar por essas escolhas.
Sabemos que o mundo mudou com a pandemia. O que mudou para os intensivistas?
Pela primeira vez, muitas pessoas entenderam o que é um intensivista, a imprensa trouxe isso de uma forma muito importante. Isso já está se convertendo no ponto de vista prático, porque o número de médicos que buscam a medicina intensiva como especialização aumentou muito. A gente também conseguiu trabalhar melhor em grupo.
Com a Covid, vimos que não existia bala de prata, remédio milagroso, mas existia fazer um tratamento multidisciplinar de qualidade.
Também facilitamos mais os processos, porque percebemos que, no nosso dia a dia, às vezes eram necessárias dez reuniões para desenhar um protocolo. E então ano passado tivemos falta de sedativo e precisamos mudar o protocolo de um dia pro outro, vinculado a farmácia e a logística. Aproximou-se então a administração da assistência para tornar esses processos mais coesos.
Outra coisa que mudou com a pandemia é que a gente teve que afastar a família do paciente da UTI, um movimento contrário do que vinha sendo o processo humanizado.
Isso foi ruim para todo mundo, então desenvolvemos ferramentas como a videochamada, que permanece até hoje, porque a gente via filho do paciente que mora no exterior ou que não conseguiu vir para a visita ficar muito frustrado. Usamos a tecnologia a nosso favor.
E do ponto de vista psicológico?
Vimos na primeira onda muitos idosos. Na segunda onda, a gente teve nossas UTIs repletas de gente jovem intubada. E isso deu um clique em todo mundo, de querer repensar coisas da sua própria vida, de aproveitar mais os momentos, as pessoas, dar mais valor às pequenas coisas do dia a dia.
No âmbito intelectual, não existia tempo para as pesquisas, elas ficaram meio de lado porque estávamos trabalhando muito: elas diziam mais sobre o que não fazer do que o que fazer.
Mas foi um momento muito bom para ciência, por exemplo, com a colisão Movimento Brasil Ciência, quando pela primeira vez concorrentes comerciais uniram forças e falaram: “Vamos dar respostas pro mundo”. Conseguimos publicar nossos trabalhos em grandes portais e mostrar a ciência brasileira pro mundo. Essa união de esforços tem ficado mesmo depois da pandemia.
O que há de mais novo dentro da área?
A gente vem trabalhando com monitorizações cada vez menos invasivas, como por exemplo a monitorização da pressão dentro do cérebro de uma forma não-invasiva. Já temos aparelho de tomografia portáteis, que vão até a UTI e que são menos agressivos para o paciente.
Medicação é aquilo: o céu é o limite.
A ciência tem muito trabalho e todo dia vemos novos medicamentos para diferentes comorbidades, ou medicamentos que já são utilizados para determinada condição sendo usados para outra. Muita coisa está sendo estudada – e é claro que muita coisa também foi descartada justamente graças a esses estudos, porque a medicina é muito dinâmica e precisamos estar sempre antenados.
O uso de tecnologias como inteligência artificial e a humanização da UTI, com visitas que são consideradas inclusive terapêuticas, são apontadas como tendências para a área. Qual é sua análise disso e como isso funciona na BP?
O uso de tecnologia é fundamental, a gente vai ter cada vez mais espaço. Usamos muito as televisivas para trazer a família mais para perto da gente, como contei, e isso foi fundamental.
Temos muitos estudos sobre a importância da participação da família na cura.
A inteligência artificial tem um caminho ainda a percorrer. Aqui no nosso hospital, temos tudo sistematizado, mas ainda temos muito a descobrir com o uso de dados e tecnologia informatizada. A tecnologia não substitui o profissional, só agrega e dá mais ferramentas.