Starbem: como um projeto solidário de enfrentamento da Covid-19 virou uma healthtech de telemedicina que usa IA

Já era tarde da noite da sexta-feira, dia 20 de março de 2020, em plena quarentena decretada no Brasil. Especialista em identificar obstruções das artérias e diagnosticar infartos, o cardiologista hemodinamicista Leandro Rubio Faria, 36, ligou para o vizinho publicitário, envolvido no ecossistema de inovação, Cristiano Kanashiro, 43, CEO da GO.K.

O assunto em pauta era a possibilidade de se unirem em uma iniciativa sem fins lucrativos, que usasse tecnologia para conectar médicos voluntários a pessoas que estivessem com sintomas de Covid-19 e ajudar no combate à doença. 

Por meio de videochamada, as pessoas seriam orientadas sobre a melhor forma de proceder. De imediato, a dupla se acertou e começou a implantar o projeto.

O fim de semana foi dedicado ao desenvolvimento da plataforma. Porém, antes mesmo de ela ficar pronta, no domingo dia 22 de março, foi criada a conta da Missão Covid no Instagram, pela qual o próprio Leandro e o amigo Rafael Brandão iniciaram o atendimento médico. Essa conta viralizou e serviu para ratificar a ideia. 

Em 72 horas, o site entrou no ar com todos os dados criptografados e a promessa de dar assistência médica online – feita através do popular e acessível WhatsApp – e gratuita a quem se cadastrasse.

O projeto ganhou uma proporção e capilaridade nunca imaginados pelos criadores. Desde aquele dia, uniram-se à iniciativa 1500 médicos voluntários, que atenderam 120 mil brasileiros – cerca de 2500 deles morando fora do país.

Houve dias em que foram realizados 4000 atendimentos. Hoje, a plataforma continua ativa e faz cerca de 30 atendimentos diários. 

“Como é uma operação toda automatizada, com um custo mensal muito baixo, deixamos aberta. Os médicos mesmo pediram para não fecharmos a plataforma, porque amam estar ali”, conta Leandro.

RESOLVENDO UMA DOR QUE NEM TINHA SIDO DETECTADA AINDA

É bom lembrar que os médicos que não estavam na linha de frente do enfrentamento ao coronavírus também entraram em lockdown. 

“Através do smartphone e com a nossa plataforma, eles puderam ter contato com pessoas que também estavam em casa, aflitas, com sintomas e medo de sair”, conta Cristiano. 

Consequentemente, esses profissionais passaram a experimentar, testar e treinar-se no uso da telemedicina.

Com o boom de utilização, a equipe de tecnologia capitaneada por Júlio Sousa logo precisou desenvolver outras funcionalidades proprietárias.

Uma delas foi a teletriagem por voz com URA (Unidade de Resposta Audível, ou seja, atendimento automático), para terem certeza de que quem entrava em contato realmente apresentava sintomas e não queria apenas tirar dúvidas.

Outra foram os prontuários eletrônicos, para substituir o formulário no Google Forms usado por Leandro nos primeiros dias.

A Missão Covid abriu o olhar de Cristiano e Leandro para vários gaps no mercado de saúde: falta de qualidade de atendimento médico, falta de infraestrutura longe das capitais, limitações dos planos de saúde e falta de profissionais especializados longe dos centros de referência como Belém, Brasília, Curitiba, Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo. 

Como centenas de milhares de pessoas passavam pela Missão Covid e viam que a telemedicina resolvia, surgiu a ideia de criar uma healthtech com fins lucrativos, que pudesse ser uma “versão 2” da ideia original. 

A Starbem nasceu para resolver esses problemas que a Missão Covid não resolvia. 

Cristiano e Leandro se uniram na empreitada e se tornaram sócios em agosto de 2020. Trouxeram todo o aprendizado da Missão Covid – funcionamento da operação, jornada do cliente e customer experience, ou como recepcionar e interagir com os pacientes – e aportaram R$ 800 mil de recursos próprios. 

UMA PLATAFORMA DIGITAL PARA CONSULTAS ELETIVAS

A dupla criou uma empresa provedora de telessaúde que fornece uma plataforma digital, inteiramente alinhada com a LGPD, para teleconsultas, em modelo de assinatura – com planos mensal, semestral ou anual. 

O conceito era ter uma solução para resolver o acesso a médicos especialistas de forma mais simples e ágil. Cristiano traz um dado a mais: o serviço resolve cerca de 80% das idas a um pronto-socorro, o que desafoga o sistema de saúde.

No “cardápio de consultas eletivas”, há 20 especialidades médicas incluídas na assinatura, cujo modelo tem como premissa custo acessível. 

No plano mensal paga-se R$ 29,97 e se tem direito a uma consulta por mês e possibilidade de incluir até quatro dependentes por R$ 9,90 cada um. Consultas avulsas com psicólogo e nutricionista estão disponíveis a R$ 59,97

Há ainda parceria com laboratórios de análises clínicas, que dão até 15% de desconto para quem é assinante. Entre eles estão: a+, grupo Dasa, Labi Exames, Sabin e Hermes Pardini. 

“É uma economia compartilhada. A gente limita o sinistro, tanto que é uma consulta por mês no mensal e oito consultas por ano, no plano anual”, explica Leandro. 

“Tem gente que estoura as oito consultas e quase chega a dar prejuízo pra gente. E tem gente que usa uma ou duas no ano, e aí compensa e fica acessível para todo mundo.”

A parte de tecnologia foi toda refeita em três meses. Atualmente, as videochamadas são realizadas pelo aplicativo, do lado do paciente, e na área de login do médico na plataforma. 

Em 3 de novembro do ano passado, a Starbem fechou sua primeira venda, com Leandro à frente da operação como CEO e Cristiano assumindo posição mais consultiva no board.

UM MÉDICO EM TRANSIÇÃO DE CARREIRA

Leandro conta que já estava em transição de carreira desde 2017, quando se tornou chefe da Cardiologia do Hospital Samaritano, em São Paulo. Ele tinha 33 anos, três residências e um MBA em Gestão de Saúde pela Fundação Getulio Vargas.

“Eu saí da cabeça de médico – [que pensa em] diagnóstico e tratamento – e comecei a ter visão de negócio. Daí veio para o Brasil a Singularity University e fiz uma imersão de três dias”, conta. 

“Lá conheci a Startse e fiz todos os cursos deles. Depois fui para o Vale do Silício, onde fiquei uma semana e pude estudar os cases de profissionais de saúde que empreendem. De lá, fui pra Stanford fazer um curso de Inovação em Saúde… e a Missão Covid me transformou.” 

De novembro de 2020 a fevereiro deste ano, Leandro conciliava o empreendedorismo com o hospital. O negócio pegou tração e os pacientes continuavam a necessitar de cuidados. 

Ele teve de escolher entre salvar uma vida por vez e a possibilidade de salvar milhares de vidas com inovação. A partir de maio deste ano, para surpresa de seus pares na medicina, ele focou na Starbem. 

“A galera não acreditou, porque em geral você sai do hospital quando é mandado embora. Mas eu saí porque decidi seguir outro sonho. Eu nem tinha remuneração nem garantias na Starbem ainda. E foi bom porque deu um empurrão pra fazer o negócio crescer.”

A aposta se pagou. No momento, a Starbem está presente em todas as capitais e conta com cerca de 3000 clientes em 250 cidades do Brasil. O modelo de negócio, que nasceu B2C também já evoluiu. 

Mesmo sem um time comercial de peso, a Starbem já opera em modelo B2B, prestando serviço a empresas como Vasco da Gama, Sambaíba, Seteco, Sumirê e WiseUp Jundiaí, que ofertam a solução a seus colaboradores e podem contratar também terapias complementares como meditação mindfulness e ioga. 

Mais recentemente, abriu o modelo B2B2C, a venda do serviço por outras empresas como se fosse um canal de distribuição.

Esse movimento já fez o faturamento de B2B bater o de B2C em novembro e, segundo Cristiano, promete crescer com o interesse de fintechs que os têm procurado.

Outra forma de a healthtech operar é ofertar o serviço ao SUS. Leandro destaca que isso demora mais porque passa por licitação, mas que já está de olho na oportunidade e conversando com prefeituras. 

“Temos um parceiro em SC, Habitual Saúde, que já tem uma conexão com o SUS, para quem já fazemos o atendimento em telemedicina. Com eles iniciamos uma nova estratégia”, diz Leandro. 

“Como é uma clínica pequena em uma cidade pequena e com poucos especialistas, eles colocaram computadores nos consultórios para conectar com a gente pela internet.”

CUIDADO HUMANIZADO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

Leandro seleciona pessoalmente os médicos que querem fazer parte da Starbem. Tem a vantagem de contar com a base que se propôs a atender pela Missão Covid – pessoas conectadas com a questão social do país e já treinadas para atender com telemedicina – e a própria rede de networking.

Para convencer os colegas a entrarem na healthtech, ele usa cinco argumentos: propósito de responsabilidade social da empresa; pagamento por todas as consultas, sejam retorno ou primeira vez; visibilidade profissional por causa das inovações propostas; benefício de o médico poder trabalhar de casa, de bermuda e jaleco; e o fato de ser a primeira e única empresa de telemedicina brasileira signatária do Pacto Global da ONU.

Em junho, a empresa recebeu um aporte de R$ 1,5 milhão e foi atrás de mais tecnologia. Acharam a Nuralogix um SaaS validado nos EUA que faz leitura de imagem óptica transdérmica, ou leitura da imagem da pele, e permite a aferição da pressão arterial sem contato, com uso da câmera do smartphone e análise dos dados por inteligência artificial. 

Assim nasceu o StarCheck, que está disponível no aplicativo da healthtech.

A Starbem, única empresa da América Latina que usa a tecnologia, desenvolveu funcionalidades exclusivas em cima do software original, como por exemplo a versão mobile. 

“Ao gravar um vídeo ao vivo, durante 30 segundos, olhando para câmera, extraímos dados da pele de seu rosto e aferimos pressão arterial, frequência cardíaca e respiratória, saúde mental – se está estressado, pegamos pelos movimentos da pálpebra e olho”, diz Cristiano. 

A estratégia, conta Leandro, foi dar acesso gratuito e universal a todos que baixassem o aplicativo para que, com base nas informações extraídas, pudessem tirar um pré-diagnóstico da saúde e bem-estar das pessoas, identificar oportunidades de oferecer serviços de saúde da Starbem e ter um atendimento mais ativo do que reativo. 

Os sócios prometem que, na próxima versão da ferramenta, lançarão aferição de massa corporal, para verificar obesidade, e risco de AVC, caso os batimentos cardíacos não estejam regulados. 

“Acreditamos que isso vai virar uma outra startup, porque já saíram evidências de que essa tecnologia consegue captar glicose alterada e colesterol”, conta Leandro.

Quando lançaram a Starbem, os sócios acreditavam em democratizar o atendimento médico de qualidade no país. Muito rapidamente repararam que 40% dos clientes que aderiram ao serviço têm plano de saúde. 

Se essas pessoas não se sentiam bem-atendidas, era hora de pensar na criação de um plano Premium, com psicologia e nutrição all inclusive. 

O produto está sendo modelado e terá mais consultas por período e um time de saúde com cuidado proativo: enfermeira para fazer a gestão de saúde e médicos 24×7.

Outra frente de desenvolvimento atualmente é um serviço de atendimento a portadores de deficiência auditiva, em que um profissional de saúde se comunica com um paciente através de um intérprete de libras. 

“Fizemos um piloto, coletamos feedback e já vamos desenhar um produto para essa população. São 11 milhões de surdos no Brasil, 30% estão empregados”, diz Leandro.

“Enxergamos um grande potencial e barreira de entrada altíssima, porque é complexo fazer um customer service pra eles.” 

Para colocar em prática mais esse sonho, Cristiano e Leandro planejam captar uma rodada de investimento seed em abril do próximo ano. 

“Com a frente ESG ganhando força no mercado, acreditamos que temos um diferencial – a acessibilidade – para atrair investimentos”, diz Leandro, esperançoso.