“Como estará a sua carreira em 2030?” É com essa pergunta inquietante que Lorenzo Tomé provoca seus colegas médicos. Criador do Saúde Digital, plataforma que oferece cursos, webinários, conteúdos multimídia e comunidades que conectam esses profissionais, ele conta que a empresa surgiu de um comichão que sentia desde os tempos da faculdade.
Afinal, como preencher as lacunas que, a seu ver, o ensino tradicional universitário deixa nos jovens formados no que diz respeito às novas tecnologias, que cada vez mais transformam o setor?
Por meio do SD Conecta, central de comunidades voltadas a médicos, empresários e outros profissionais do setor, Tomé convida para todos buscarem, juntos, as respostas para o que precisarem. São espaços para compartilhamento de ideias, de colaboração e de indicações.
Gratuito para médicos (“a monetização vem das empresas que desejam apoiar as comunidades de conteúdo relevante”, explica), mas com acesso limitado, por meio de convite, o SD Conecta oferece a um parrudo conteúdo online, de podcasts a aulas gravadas.
Segundo o empresário, já são mais de 25 mil inscritos. Este ano, a previsão é de que o Saúde Digital triplique de faturamento, graças ao “financiamento exclusivo dos sócios, comprometidos em mudar a forma como o médico se atualiza”.
Tomé é médico radiologista, formado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atua também como professor e coordenador da disciplina Medicina Digital na unidade de Campinas da Faculdade São Leopoldo Mandic. Confira a entrevista:
Por que você criou o Saúde Digital?
Senti na pele. Na minha formação, tanto na graduação como na residência, vi que o médico entende muito das tecnologias de procedimento (tomógrafo, ressonância magnética…), mas não entende das tecnologias de processo, as digitais (prontuários eletrônicos, aplicativos, sistemas de TI que impactam no paciente…). A faculdade não ensina. Foi uma dificuldade que tive, por isso comecei a estudar a respeito. O Saúde Digital veio em consequência disso.
Você já tinha alguma experiência anterior em inovação ou no universo de healthtechs?
Minha especialidade, a radiologia, está na fronteira da tecnologia. A maneira como um médico radiologista entrega valor é por meio de sistemas, tecnologias digitais, como PACS [sigla em inglês para “sistema de comunicação e arquivamento de imagens”] e RIS [“sistema de gerenciamento de informações radiológicas”], em que o médico insere a informação do laudo.
Mas experiência em empreendedorismo tive quando, logo que terminei a residência, criei uma clínica móvel de ultrassonografia.
Estava dando certo, entretanto vi que ainda precisava estudar mais. Decidi, por ora, interromper esse processo e fui estudar ressonância magnética.
Dá para conciliar o dia a dia de médico com a gestão e produção de conteúdo no Saúde Digital e suas outras atividades, como de professor?
Não dá. Tenho três filhos, quando tento abraçar os três ao mesmo tempo é muito diferente de abraçar só um. Quem quer abraçar muitos aperta pouco. Essa foi talvez umas das mais difíceis decisões da minha vida, quando tive que interromper minha assistência médica para me dedicar integralmente ao Saúde Digital. Eu passei dificuldades. A medicina historicamente remunera bem o médico, mas eu tomei essa decisão porque precisava desenvolver melhor a minha empresa. Assumi o risco, mas hoje estou satisfeito.
O Saúde Digital se diz referência nacional na organização de eventos online. Sabemos que esse mercado cresceu com a pandemia, mas já era o foco de vocês antes?
O Saúde Digital já fazia conteúdo online antes de a pandemia começar. Tudo começou embrionariamente em uma sala de aula da Fundação Getulio Vargas. Depois fomos convidados para salas de eventos do Cubo, o maior hub de startups da América Latina. Lá de dentro eu sempre pensei: aqui estão participando 40 pessoas de São Paulo, que têm o acesso a esse conteúdo, mas será que não há outras pessoas espalhadas aí pelo Brasil que gostariam de acessar esse conteúdo?
Baseado nisso, eu comecei a fazer em 2019 streaming ao vivo de tudo o que a gente chamava de Meet Up Health 4.0.
Interessante é que a gente já fazia pelo Zoom, que hoje virou uma das maiores plataformas do mundo. A qualidade técnica era satisfatória, claro que sem muitos requintes de produção, a gente não tinha lucro com isso, mas o médico e o executivo de saúde já conseguiam acessar o Meet Up Health 4.0 desde 2019. Fomos pioneiros nessa mentalidade de propagar a educação médica online. O que nos permitiu crescer satisfatoriamente na pandemia foi ter o know-how, porque já fazíamos isso 12 meses antes.
A pandemia acelerou algumas tendências antes previstas para o fim da década e além, como a popularização do home office e os avanços acelerados de sequenciamento de vírus e de produção de vacinas. Na realidade da medicina no Brasil, você vê alguma mudança nesse sentido, causada ou acelerada pelo coronavírus?
Com certeza. As mudanças são nítidas. Infelizmente o setor de saúde precisou de uma pandemia para enxergar o quanto estava atrasado perante outros segmentos da sociedade e começar sua transformação digital. Hoje a gente vê os grandes players, grandes stakeholders da saúde, muito mais aptos e propensos a comprar e investir na inovação, na tecnologia digital. Hoje a gente vê hospitais que estão buscando alternativas para o seu negócio além da porta do pronto-socorro e dos blocos cirúrgicos.
A gente vê indústrias farmacêuticas, que sempre foram muito conservadoras e tradicionais, que compravam somente de outras multinacionais, fazendo negócio com startups, agilizando os processos.
A gente vê médicos, que sempre estiveram em uma zona de conforto baseada nos seus diplomas fixados na parede, vendo que só esses certificados não são o suficiente, que eles precisam ir para o lado do paciente, precisam descer um degrau. Infelizmente isso veio com a pandemia, mas por outro lado, felizmente, hoje a saúde respira esses ares de inovação, de buscar uma jornada digital para o atendimento, de colocar o paciente no centro do cuidado.
A telemedicina é um belo exemplo, é uma ferramenta que dá muito acesso, os níveis de satisfação dos pacientes são excelentes.
Trabalhos científicos internacionais mostram que a telemedicina melhora significativamente os desfechos em saúde. Em 2019 a gente teve uma resolução do CFM [Conselho Federal de Medicina] aprovada e menos de 20 dias depois derrubada, muito por causa da pressão da classe médica, que era contra essa tecnologia. Não faz nenhum sentido o setor de saúde ser contra o avanço das tecnologias digitais, porque isso é inexorável, isso vem para todos os setores. Lutar contra isso é burrice, é ignorância. O que você tem que fazer é surfar a onda, se adaptar, acrescentar novas camadas de conhecimento.
Qual o perfil do seu público?
Médicos formados que buscam conhecer o que há de novo e as transformações digitais na área de saúde. Antigamente, um médico, para se manter atualizado, ia a uma biblioteca, comprava um livro ou assinava um periódico. Isso continua valendo? Continua. É bom? É excelente. Só que tem uma nova geração de médicos. Se você pegar a estatística do CFM de dezembro de 2020, verá que 52% da população de médicos brasileiros têm até 40 anos, o que mostra um rejuvenescimento, um alargamento da base da pirâmide.
Muitos desses jovens médicos são da era Google, estão acostumados a consumir conteúdo por vídeos, baseado em experiência, na prática do outro.
É isso que nós oferecemos por meio do SD Conecta. Além do conhecimento em medicina digital, dos sistemas, dos bits e dos bytes, nós trazemos a oportunidade de o médico aprender em comunidade – porque nós somos um hub de comunidades – sobre todas as doenças que ele precisa, desde como tratar uma cefaleia, qual é a conduta no câncer de pulmão, como fazer uma conduta excelente em alguém com Covid-19… O que fazemos não é só digitalizar a biblioteca. Nós a digitalizamos e oferecemos uma experiência de aprendizado baseada na comunidade entre pares.
Pela sua percepção, tanto com o público do Saúde Digital como com seus alunos, quais os grandes anseios, expectativas e medos desses profissionais para o futuro próximo?
Existe um medo de que as novas tecnologias, softwares, inteligência artificial, sistemas e aplicativos tirem espaço do profissional. Existe o trauma do taxista com o Uber. Só que esse é um pensamento que vem por causa do desconhecimento e da desinformação. A tecnologia é uma ferramenta.
Uma ferramenta nunca substitui quem a usa. O pincel não vai substituir o pintor, por mais moderno que seja o pincel.
Um estetoscópio não vai substituir o médico, por mais moderno que seja, assim como a inteligência artificial é pura e simplesmente uma ferramenta, é uma maneira para eu entregar melhor o meu conhecimento para o meu paciente. É como posso potencializar todo meu cabedal de conhecimento a favor do paciente. Existe o “trauma do taxista” na classe médica, não podemos negar, mas acredito que isso logo vai passar. Agora, o médico que se acomodar e não se adequar a essa nova realidade de transformação digital da saúde está vulnerável. A culpa não é da tecnologia, é da falta de adequação ao mercado. Isso é um ponto de atenção, mas não é uma ameaça, não é algo que está fora do poder de ele resolver.
Com a profusão de novas tecnologias surgindo, para onde caminha a medicina? E aonde ela deveria estar indo?
Caminha para tirar o fee for service, o pagamento por serviços, o que favorece a indústria da doença. Quando eu ganho mais por laudar mais exames de ressonância magnética, eu gero mais exames, então encareço o setor e não necessariamente estou melhorando o desfecho em saúde. Quando ganho por cada cirurgia bariátrica que faço, quanto mais obesos houver na população, maior será minha receita.
A indústria da saúde ainda está no paradigma do fee for service: quanto mais doentes eu tenho, mais serviços vou prestar, mais eu vou ganhar.
Para onde caminha a indústria da saúde, e deve caminhar, e onde quero vê-la: uma medicina que coloca o paciente no centro, em que ele é visto como um cliente, ou seja, pode cobrar pelo que recebe, tem voz ativa para decidir junto com o seu médico o melhor tratamento. Uma medicina que está na fronteira do uso da tecnologia, que caminhe para remunerar o desfecho. Quanto maior o valor que você entregar para o sistema, mais você vai ser remunerado pelos seus méritos de entrega de valor e não pela quantidade de procedimentos ou de atos que você faz, porque nisso há um desvio de interesse que não favorece a melhoria da saúde da população.
O Saúde Digital tem conteúdo em texto, vídeo, podcast. De onde vem essa sua facilidade de comunicação, de trabalhar com diversas mídias?
Venho de uma família de classe média do interior de Minas Gerais, com mãe professora de escola pública e pai produtor rural. O que mais me motivou foi a curiosidade. Meu apelido na família era “garoto por quê”. Para tudo eu perguntava “por quê?”. Sempre olhei para as pessoas, independentemente do tipo de trabalho delas, e via que tinham algo para me ensinar. Eu ia para a fazenda com meu pai, tinha um senhor fazendo uma cerca de arame, eu ficava do lado dele perguntando “por que o arame tem que ficar esticado?”, “por que você usa arame farpado e não o liso?”, “por que essa madeira aqui é mais grossa que a outra?”.
Cresci fazendo perguntas para todas as pessoas que estavam ao meu redor. Acho que fui treinando essa habilidade e hoje a uso no trabalho.
Em certo momento na minha vida de empreendedor eu olhei para trás e me perguntei o que eu gosto de fazer, o que faço com vontade, com brilho nos olhos. Vi que gostava de fazer perguntas, de achar os porquês. Por que não posso unir isso e quem sabe ser remunerado, tirar o meu sustento disso? É por onde foi caminhando o Saúde Digital, e isso se traduz no podcast, que está no ar há três anos. Nele eu pergunto “por que” aos meus convidados. Com o que eles respondem eu aprendo muito e assim vou crescendo.
Quais os próximos passos do Saúde Digital?
Potencializar e escalar o produto do Saúde Digital, que é o SD Conecta. É ali que a gente repensa a educação médica, que a gente proporciona que os médicos aprendam em comunidade, entre pares, de uma maneira mais fluida, mais amigável e mais contemporânea, trazendo práticas, conceitos, indicações para que eles possam aprender entre si. Hoje já estamos no Brasil e no Paraguai, pretendemos em breve traduzir nosso know-how para espanhol e inglês.
Que notícia sobre sua especialidade você gostaria de ler no jornal ou nos sites de notícia amanhã?
Acredito muito que quando a pessoa trabalha e vê propósito e gosta do que faz ela consegue entregar muito mais valor à sociedade. Não quero falar que dinheiro não é importante, todo mundo tem conta para pagar. Também não estou falando que trabalhar é a melhor coisa do mundo – não é. É o suor do seu rosto para ganhar o seu pão. É pesado, é árduo. Mas o que eu gostaria de escutar é que as pessoas agora passam a unir trabalho e satisfação pessoal no mesmo lugar, pessoas que acreditam naquilo que elas fazem. Ainda vejo muita gente cujo único propósito do trabalho é ganhar dinheiro. Se um médico vai dar um plantão, maravilha, que bom, mas que naquelas 12 horas aquilo seja intenso para ele, que entregue para os pacientes o melhor dele, e que não saia do plantão reclamando.
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