Com instrumentos médicos na mão, o cirurgião ortopédico Bruno Gobbato narra, passo a passo, uma cirurgia que ele classifica como relativamente simples. Nela, o médico retirava uma placa estabilizadora colocada semanas antes na clavícula fraturada de um paciente, logo após ele sofrer um acidente de bicicleta.
O procedimento seria apenas mais um dos vários que o médico fez, não fosse por um motivo: ele foi todo transmitido, ao vivo e para quem quisesse ver, em um evento que durou 24 horas no início de fevereiro. O Tour Mundial de Realidade Mista em Cirurgias, promovido pela Microsoft e liderado pelo professor francês Thomas Grégory, teve a participação de 15 cirurgiões de 13 países diferentes. (Se você ficou curioso, o evento está disponível para ser assistido aqui.)
No tour, os médicos colaboraram entre si em cada uma das cirurgias usando o HoloLens 2, equipamento fabricado pela Microsoft. O headset, uma mescla de viseira com óculos, produz hologramas no campo de visão da pessoa, além de permitir o compartilhamento da visão em tempo real.
Sem fio, o HoloLens também conecta-se com aplicativos e soluções para permitir ou aprimorar a colaboração, inovação e produtividade. Tem tecnologia de rastreamento de mãos e olhos,que detecta onde está o foco do usuário – no caso dos cirurgiões, isso permite mais precisão na cirurgia.
O Brasil foi representado por Bruno Gobbato, um, digamos assim, early user da tecnologia – quando era residente, o médico já brincava com a ideia de realidade mista usando partes de um videogame. Pioneiro na aplicação de holografias em cirurgias, o especialista em ombro e cotovelo do Hospital Jaraguá, em Santa Catarina, ajudou Thomas a treinar os demais cirurgiões que participaram do evento.
Nesta entrevista, ele conta sobre a experiência e sobre sua história com a realidade mista.
Como começou seu interesse por tecnologia?
Não teve um evento específico, assim como não tem um que explique minha paixão pela medicina. Tenho 40 anos e lembro que acessava a internet com um BBS [sigla para Bulletin Board System, que funcionavam como provedores web] para acessar salas de bate-papo. Com 15 anos de idade, montava sites naquele HTML cru, não existia nada visual. Quando a Apple lançou a loja de aplicativos para o grande público, percebi que tinha alguma coisa ali diferente. Me interessei e fiz o meu primeiro aplicativo, em HTML.
E com realidade mista?
O interesse surgiu, e acho que não contei isso para ninguém, com o videogame Nintendo Wii. Ele tinha aquele joystick sensível aos movimentos, com um acelerômetro [capaz de calcular a força exercida sobre ele], um inclinômetro [instrumento que mede ângulos de inclinação e elevação]. A gente nem sabia o nome dessa tecnologia, só sabia que ele media ângulos.
Com o joystick, conseguia medir ângulos à minha frente, para trás. E comecei a usar, inclusive, o joystick do Wii lá na residência para fazer medição de ângulos de ortopedia.
Esse era um projeto muito, muito simplório mesmo. Minha ideia era fazer uma plataforma com o Wii. O joystick do Wii tinha uma câmera infravermelha. Ele enxergava dois pontos infravermelhos no espaço e, com essa referência, conseguia saber sua localização, se estava virado ou não. Começamos a usar isso de uma forma muito amadora. Naquela época eu era residente de ortopedia, e residente trabalha bastante. Eu não tinha tempo para nada, nem para pensar, às vezes tinha para comer. Então não dava para desenvolver nada.
No fim de 2013, vi um vídeo no YouTube de um rapaz que tinha uma fratura de antebraço e passava por uma correção de uma cirurgia. Eles usavam modelos 3D.
Os modelos eram da Materialise, que naquela época era uma empresa grande de impressão 3D para medicina, mas não uma gigante como hoje. Pensei: peraí, isso é diferente, é algo que não vi até hoje. Sou de Jaraguá do Sul, no interior de Santa Catarina, e fui na faculdade da cidade conversar com o pessoal da engenharia. Eles tinham uma impressora de R$ 70 mil reais.
Levei para a faculdade os modelos de um paciente meu, fizemos a impressão e ficou legal.
Comprei depois uma impressora nacional, bem mais barata. Quem fazia impressora 3D, no fim de 2013, fazia em casa, né? Eram bem, bem manuais. Comecei então a trabalhar com impressão 3D nessa época.
Eu mostrava as impressões 3D para os meus colegas de ortopedia e eles nem davam bola, porque não entendiam o que era aquilo.
Mas foi esse meu primeiro passo para a realidade mista. Na verdade, o conhecimento é o mesmo. Mas fazer um modelo 3D para realidade mista, na verdade, economiza tempo. Em vez de botar na impressora e esperar 12, 14, às vezes 24 horas para imprimir uma peça, pego o modelo 3D do meu paciente que está com uma lesão, com uma fratura, jogo nos meus óculos e vou para a minha cirurgia. Para mim, é a evolução da tecnologia.
Na prática, o que você fazia com o modelo impresso?
Não é tão fácil explicar, nem os meus colegas ortopedistas às vezes conseguem entender direito – ou agora já entendem melhor, porque já é uma tecnologia que está mais abrangente.
A primeira coisa é você ter o modelo 3D do seu paciente na sua mão, para que você possa virar a peça e olhar por cima, por baixo.
A última vez que peguei um osso inteiro na mão foi na aula de anatomia, 20 anos atrás, quando estava estudando um monte de cadáver. Não posso pegar um osso do meu paciente na mão. Na hora de uma cirurgia, o que eu vejo do osso do paciente é uma parte pequena. O que tem para cima e o que tem para baixo eu não vejo. Eu só imagino por causa do raio X que fizemos, por causa da tomografia.
Para que eu veja o que tem para cima e para baixo, preciso imaginar – ou então imprimir em 3D.
Com a peça, feita a partir de raios X ou tomografias, eu sei onde o osso termina, qual o tamanho exato dele e posso ver onde exatamente eu coloco um parafuso ou uma placa, de qual tamanho. Com o modelo em mãos, o processo da cirurgia fica mais fácil.
E com a realidade mista, funciona do mesmo jeito?
A única diferença é que não preciso levar esse modelo fisicamente para dentro da sala de cirurgia. Ele está nos meus óculos. Quando eu quero, abaixo a viseira e o osso aparece virtualmente.
Além da precisão, quais outros benefícios a tecnologia traz?
Para mim, especificamente, a realidade mista tem dois principais benefícios. O melhor é mesmo a precisão. Ela me ajuda a colocar um parafuso no local exato, não é um pouquinho para o lado, não é um pouquinho para cima. Mas também tem benefício no tempo da cirurgia. Ela fica um pouco mais rápida, justamente por causa da precisão. Imagine que tenho que fixar um parafuso em um determinado lugar. Eu coloco o parafuso e faço um raio X para ver se está tudo certo. Se está, já sigo para o próximo passo. E isso diminui o tempo cirúrgico.
Diminuindo o tempo cirúrgico, diminuem os custos e a chance de infecção, por exemplo.
Gosto de comparar o processo a pilotar um avião. Pilota-se um avião decolando no visual e aterrissando no visual. Ou pilota-se no visual com o instrumento de voo do lado, checando se está na velocidade correta, na direção correta. Você sabe chegar do trabalho para sua casa. Mas pode olhar no GPS ou no aplicativo de trânsito para saber se tem algum caminho melhor. Com a realidade mista é a mesma coisa. Em um procedimento simples, ela auxilia na direção, mas em um procedimento complexo ela é um GPS andando em São Paulo em um dia de trânsito. Você precisa dele para não correr o risco de cometer erros.
Você vê outras aplicações da realidade mista na medicina?
Eu posso, durante a cirurgia ou durante um exame mesmo, me conectar com colegas cirurgiões, de qualquer lugar do mundo, para, pelos óculos, verem exatamente o que eu estou vendo.
Se tenho um caso específico de alguma doença rara, por exemplo, posso pedir para um colega que esteja nos Estados Unidos e entenda mais disso que participe da consulta ou da cirurgia.
Coloco os meus óculos, mostro para ele o paciente e trocamos informações durante o procedimento. Essa é uma outra grande vantagem da realidade mista. Além disso, uso um computador com Windows 10, tenho a plataforma Teams aqui dentro dos óculos e posso inclusive fazer reuniões por meio deles.
E em outras especialidades?
Vou ser bem honesto: o caminho ainda é bem inicial, então as possibilidades começam a ser exploradas. Na ortopedia temos uma certa facilidade – e digo isso entre aspas – de construir os modelos 3D de ossos. Por isso, na ortopedia, estamos à frente em realidade mista. Mas o pessoal da neurocirurgia, em cirurgias de alta precisão, já utiliza também, assim como os cirurgiões plásticos, de cirurgia reconstrutiva – eles usam câmeras e scanners 3D para entender como o paciente está e planejar como vai ficar. Acho que são as três principais áreas nesse momento. Mas acho que estamos num momento como o que vivíamos com os primeiros celulares, sabe? A gente ainda não sabia toda a aplicação que ele teria. Hoje, a última coisa que fazemos com um smartphone é telefonar ou mandar SMS. Não chegou ainda em toda a capacidade da realidade mista.
Como foi a primeira cirurgia que você fez usando a tecnologia?
O HoloLens 1 foi lançado em meados de 2016 e no fim do ano já compramos um. Como ele não estava disponível no Brasil, compramos no Ebay uma versão de desenvolvedor dos Estados Unidos. O Henrique [Lampert], que é meu sócio e cirurgião de coluna, também gosta muito de tecnologia e foi até os Estados Unidos buscar esses óculos.
A gente detém um recorde não publicado da primeira cirurgia com realidade mista.
Sabemos que fomos os primeiros, só não temos como provar, porque foi no finalzinho de 2016 e não gravamos o procedimento. Minha primeira cirurgia gravada com o HoloLens 1 foi em janeiro de 2017.
Os óculos são necessários em todas as cirurgias?
Não. Eu diria que são poucas as cirurgias em que a gente utiliza os óculos, principalmente sua primeira versão, o HoloLens 1. O equipamento era um pouco mais pesado e limitado, não tinha a possibilidade de levantar o visor. Então, nos momentos em que eu não precisava da imagem 3D que o visor traz, os óculos chegavam a me atrapalhar.
Hoje, não: é possível levantar o visor e, assim, consigo ficar com os óculos na cabeça, operar normalmente e, quando eu preciso, abaixo o visor e utilizo a tecnologia.
Fora a melhora no uso. Nas cirurgias de rotina, nos procedimentos simples, não tão invasivos, não coloco os óculos e nem faço o modelo 3D. A gente utiliza esse tipo de tecnologia basicamente em torno de 25% dos nossos procedimentos. Sou especialista em ombro e cotovelos. Das doenças do ombro e cotovelo, as lesões que a gente mais intervém, faz mais procedimentos, são as lesões de tendão, bursite, tendinite. Esses procedimentos são todos feitos por artroscopia, em que uma câmera de vídeo é introduzida na articulação. Cirurgias de prótese, por exemplo, são mais complexas. Nelas, se houver complicações, são difíceis de tratar. Para elas ou para fraturas mais graves, usamos os óculos de realidade mista.
Como você foi convidado para o Tour Mundial de Realidade Mista em Cirurgias?
Quem encabeçou esse projeto foi o professor Thomas Grégory, o pioneiro no uso da realidade mista em cirurgia. Enquanto eu estava brincando aqui com os joysticks, ele já levava a sério esse tipo de tecnologia. Ele é ortopedista e, como eu, cirurgião de ombro e cotovelo, temos essas similaridades. Nos conhecemos desde 2017 por intermédio do LinkedIn. Como postamos lá nossos trabalhos, acabamos nos conectando e conversando. A comunidade científica era relativamente pequena naquela época.
Ele teve a ideia de fazer, junto com a Microsoft, com o lançamento do HoloLens 2 [no fim de 2019], um projeto de 24 horas de cirurgias no mundo todo usando realidade mista.
No ano passado, fizemos o treinamento do uso da tecnologia dos outros cirurgiões que participaram do evento ao redor do mundo. Representantes de 13 países participaram, alguns indicados por mim, outros pelo próprio professor Thomas.
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