Se você pouco ouve falar em Medicina da Família e Comunidade, saiba que o cenário está mudando cada dia mais – e isso é uma ótima notícia.
Especialidade dedicada a prestar assistência à saúde de forma continuada e integral, ela tem, como o nome sugere, a família como foco, além de uma orientação para a comunidade em que a pessoa está envolvida.
O que isso significa, na prática?
“É cuidar da saúde da pessoa de forma geral, olhando não só para os resultados clínicos, mas também para o espaço em que ela está e a influência desse espaço sobre ela”, explica Zeliete Zambon, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade e coordenadora do internato na parte de ensino de Medicina de Família e Comunidade da São Leopoldo Mandic, em Campinas.
“Interferem o meio ambiente, a psicologia, seus hábitos e também os hábitos de seus familiares, suas relações, sua cultura, entre outros fatores.”
Zeliete, que também é coordenadora da Comissão de Residência Médica na São Leopoldo Mandic e CEO e co-founder da Ampliare, uma empresa de coordenação de cuidados na atenção primária da saúde, conta que custou a se encontrar em uma especialização.
Isso justamente porque ela buscava essa amplitude – e não a encontrava nas residências comuns.
Apesar de sua importância e de ter, muitas vezes, o único representante médico a atender comunidades mais distantes ou mais carentes, a especialidade ainda conta com poucos adeptos.
De acordo com dados do estudo Demografia Médica no Brasil, divulgado em 2020, o país tem 7.149 profissionais com esse título, sendo as maiores concentrações nos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rio de Janeiro.
Confira a seguir a entrevista completa com Zeliete Zambon, na qual ela conta sobre as especificidades de sua especialidade e por que ela é considerada uma das mais importantes para o futuro da saúde sustentável.
Por que você escolheu essa área?
Quando fiz a minha faculdade na Escola de Medicina da Santa Casa de Misericórdia no Espírito Santo, há 22 anos, não existia a especialização da Família e Comunidade no formato que temos hoje – isso só foi surgir em 2002, e eu me formei em 1999.
O tempo inteiro eu era superinquieta e gostava de todas as áreas, e estava sempre em busca de alguma especialidade que trouxesse a questão da qualidade de vida.
Então eu fiz tudo dentro da faculdade, me preparei para qualquer coisa e também fiz um curso de especialização que terminaria junto com a faculdade, de psicoterapia Gestalt – a linha do aqui e agora. Somente um ano e meio depois da formatura que descobri um programa do governo que buscava criar uma estratégia de saúde para a família.
O que esse programa trouxe para você?
Foi nele que pude perceber que aquele médico era um grande gestor da saúde da pessoa. Foi quando pensei “é isso que eu gostaria de fazer”: cuidar da saúde das pessoas de forma geral, olhando para o espaço em que você está e a influência dele, o meio ambiente, a psicologia, os hábitos. E aí eu fiquei sabendo que existia essa especialização no mundo todo, e aqui no Brasil chamava Saúde Geral e Comunitária, que era muito voltada para as questões epidemiológicas e populacionais, não tão voltada para a família.
Estávamos em um momento de transição e em 2002 essa especialização ganhou o nome que tem hoje e foi reconhecida como especialidade médica.
Foi quando vim para São Paulo pra poder estudar um pouco mais, começar uma carreira acadêmica dentro dessa área e atuar também. Fiz a primeira titulação que existiu no Brasil, em 2004, e daí em diante eu sempre fiz tanto a parte assistencial como médica de família qaunto a parte de pesquisa e de ensino.
Como é o seu dia a dia e campo de atuação?
Primeiro partimos do ponto da pessoa, então nós somos médicos especialistas em pessoas. Esse indivíduo tem obviamente um corpo físico, no qual estudamos todas as alterações, mas também ele possui sua questão emocional.
O meio ambiente pode afetá-lo, a questão ambiental, o lugar onde trabalha, com quem convive, suas relações, tudo isso influencia na saúde dessa pessoa.
Um bom médico de família também tem que ter uma boa competência cultural, entender que a cultura influencia no que seu paciente irá comer, como irá dormir, o que ele mais valoriza. Não adianta você falar para uma pessoa não comer farinha se ela está inserida em um contexto em que a farinha de mandioca é a base alimentícia dela. Isso vai ser ruim para ela. Tenho que considerar que aquilo faz parte de sua vida e de sua família.
Como seus estudos em Gestalt auxiliaram nessa jornada?
Quando eu falo do contexto Gestalt, eu falo de como a pessoa estudou, quais são as relações dela, como isso influencia no dia a dia dela. Então também pensar na relação dela com serviços, o país no qual ela mora, as questões sociais e econômicas. E outra questão é que nós acompanhamos essa pessoa ao longo do tempo.
Quanto mais conheço essa pessoa, mais conheço os mecanismos dela de defesa, como o corpo dela se comporta diante das situações, as doenças, o histórico de doenças familiares.
E então minha tomada de decisão se torna mais assertiva. Também temos que ser uma fonte de recursos de educação e saúde, levando prevenção e promoção de saúde e trabalhando dentro da atenção primária, que é um ponto de acesso ao contato dela com a saúde. Qual é o primeiro contato que eu tenho quando preciso resolver alguma questão relacionada à minha questão de saúde? O médico de família e comunidade.
E a especialidade se dá sempre nos moldes públicos?
Isso é um grande viés que as pessoas têm, essa crença de que o médico da família e comunidade é sempre do serviço público. De fato, por muitos anos, a gente só atuava dentro do modelo público, já que o Sistema Único de Saúde já tinha essa estratégia. Mas, hoje, cada vez mais o serviço privado tem aumentado a procura por esses médicos, até por uma questão de equalização de custos.
Porque se uma pessoa é acompanhada por um especialista como nós e se previne e se conhece, ela vai gastar menos com saúde.
Uma pessoa que tem dor nas costas e vai procurar um ortopedista, neurologista, reumatologista vai acabar gastando muito com exame. Mas, se ela fosse ao médico da família, ele avaliaria o seu contexto inteiro e isso diminuiria gastos para saúde privada. Estamos agora passando por uma mudança no mercado, em que estão sendo construídos sistemas verticalizados de saúde, com planos de saúde que funcionavam separadamente e, agora, foram comprando serviços que oferecem a jornada completa ao paciente.
Qual é a a importância de sua especialidade para a sociedade?
Há uma questão social e uma questão planetária envolvidas. Na hora em que estudos sobre economia são feitos, o resultado geralmente é o mesmo: sistemas que possuem economia forte também têm saúde forte. E uma saúde forte é pautada em saúde primária. Através da saúde eu cuido da população como um todo. Então eu cuido das questões indígenas, de toda a questão do povo das florestas, das águas, vejo tudo que está interligado ali naquele meio.
É a especialidade que tem uma inserção maior dentro das populações mais desfavorecidas.
Falo dentro das favelas, com populações ribeirinhas, aquela de difícil acesso – a gente chama também de medicina rural. Encontramos nesse cenário, muitas vezes, pessoas que vivem confinadas em um mesmo espaço. Até por isso que às vezes temos uma classificação própria desses problemas. Toda a medicina é baseada no CID, nós somos pautados na CIAP (Classificação Internacional de Atenção Primária).
E como isso funciona?
Quando se classifica um problema, não necessariamente um problema é uma doença. O problema pode ser um desemprego, não ter dinheiro para alimentação – e aquilo influenciar na saúde da pessoa. A organização social e econômica dos espaços atinge diretamente a saúde das pessoas e a medicina entra aí.
Na hora de pensar em sustentabilidade, você pensa em saúde planetária – e a medicina de família foi a primeira que trouxe isso para ser discutido.
[Saúde planetária é o campo de estudo que tem como objetivo pensar a saúde e o bem-estar das pessoas e dos sistemas naturais do planeta.] Isso aconteceu no nosso último congresso, que foi de julho a setembro de 2021 – e foi aqui no Brasil. Vários médicos do mundo inteiro discutiram essa questão, e outras áreas de atuação também participaram, como biologia, biodiversidade, economia, agronomia.
Quais são os ônus da profissão?
O ônus é o seguinte: como é uma área muito ampla, muitas vezes nós somos considerados “não-médicos”. Ela faz tudo e não faz nada. As pessoas desconhecem como de fato funciona a especialidade, então por vezes a gente vê nossos próprios pares indagando “que especialidade é essa?”.
Para sermos reconhecidos dentro do meio científico, tenho que repetir meu discurso milhares de vezes.
Eu tenho que ir a vários espaços. Tenho que ser presidente da Sociedade Brasileira da Família e Comunidade, tenho que estar na Associação Médica, na residência médica, tenho que estar com a população leiga, eu tenho que dialogar com quem faz políticas públicas, tenho que saber de economia. É uma área muito grande e o tempo inteiro eu tenho que fazer primeiro um discurso de explicação, e segundo um de convencimento. Isso já foi pior anos atrás, hoje está mais claro, mas ainda temos que nos desdobrar e gastar muito tempo com essa questão. Isso não acontece com um cardiologista, por exemplo.
E o bônus?
O bônus é estar envolvida com a especialidade do presente e do futuro. Estar em todos os espaços – o ônus é a mesma coisa que o bônus. É uma especialidade extremamente versátil: sou chamada pra dar aula, fazer gestão de serviços de saúde, atender as pessoas, dar orientação e consultoria na área de políticas públicas de saúde, sou chamada para pesquisa. Isso dá brilho nos olhos, você participa de tudo o que é da medicina a partir da sua especialidade.
O que há de mais novo e inovador na área?
Vamos pensar: hoje, o que está acontecendo no mundo? A informação nunca foi tão valorizada – para mim, é o novo ouro da economia. A medicina de família e comunidade trabalha com informação e a partir delas é que você gera ações que você vai fazer. Nós trabalhamos com big data. Hoje, você dá um Google num sapato e aquilo que você estava procurando começa a aparecer em suas redes sociais. Com a saúde é a mesma coisa. Eu também vou utilizar essas informações – e já fazemos isso para traçar perfis.
Utilizar big data e devices para colher parâmetros de saúde das pessoas, como frequência cardíaca em repouso ou em atividade física, a frequência respiratória, saturação de oxigênio, é o que há de mais novo.
Colher todas essas informações e apresentar em gráficos no computador do médico e em aplicativos – e a pessoa carrega isso, como pulseiras que trazem todas as suas informações mais importantes. Sou da especialidade que faz a gestão de todas essas coordenações. Nós é quem vamos enxergar os problemas, ter as informações e coordenar o cuidado. É por isso que tantos planos de saúde têm tido interesse na atenção primária de saúde e contratando médicos como eu – de fato, vamos ser os grandes orientadores do funcionamento e gerenciamento de saúde.