A pele é o maior órgão do corpo e existem inúmeras enfermidades que podem acometê-la, de queimaduras a câncer de pele – o tipo da doença mais diagnosticada no Brasil, com 180 mil novos casos descobertos no país por ano, segundo o Instituto Nacional de Câncer.
A pele também é imprescindível quando olhamos para a indústria farmacêutica – seja para cosméticos ou para medicamentos, uma enormidade de substâncias é estudada e testada nela antes de chegar ao mercado.
Pensando nisso, a EleveScience, uma startup de base tecnológica que tem três mulheres à frente, criou em laboratório uma pele artificial para atender indústrias de produtos cosméticos, farmacêuticos, alimentícios e médico-hospitalares. O material ajuda a avaliar a segurança e a eficácia de diversos produtos, como filtros solares e anti-idades, sem que cobaias sejam necessários.
TENDÊNCIA DA CULTURA DE CÉLULAS
Entre 2003 e 2004, a farmacêutica Franciane Marquele-Oliveira, que na época estava na pós-graduação, começou a ouvir falar de uma tendência que nascia na Europa: o estudo de métodos alternativos em seu campo de atuação.
“Quem trabalha com desenvolvimento de produtos utiliza metodologias de ensaio – e, naquela época, nós não tínhamos métodos alternativos solidificados no Brasil”, conta.
“Eu fiquei muito marcada por saber que a cultura de células e tecidos já estava em desenvolvimento na Europa.”
“Continuei trabalhando na área de desenvolvimento de produtos, mais tarde tive uma engrandecedora experiência na indústria, mas foi depois de uma década, entre 2015 e 2016, que conheci a Ana Luiza Forte [farmacêutica com mestrado e doutorado na área] e propus que investíssemos no desenvolvimento de métodos alternativos, principalmente na parte de pele – o nosso grande interesse e sinergia”, lembra.
Ana Luiza estava finalizando seu doutorado e elas solicitaram apoio à Fapesp para iniciar os estudos com desenvolvimento da plataforma de pele. E nascia a EleveScience.
PARCERIAS PARA O SUCESSO DO NEGÓCIO
No início, a EleveScience estruturou-se estabelecendo parcerias com laboratórios que cederam seus espaços. Em 2018 começou uma bem-sucedida incubação no Supera Parque, em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, que resultou no estabelecimento de uma infraestrutura de pesquisa e inovação, no local, um ano depois.
Em termos de investimentos, Franciane precisou tirar valores do próprio bolso – e também contou com o investimento de um anjo, “um executivo que atua no mercado”, segundo ela, para auxiliar nessa implementação.
A empresa teve também apoio da Fapesp e de outros projetos e pesquisadores que foram sendo agregados ao grupo, sempre focando na parte da exploração dos conhecimentos relacionados à pele.
“Nós buscamos entender todos os mecanismos envolvidos nas doenças de pele”, afirma Franciane.
“Isso nos permite levar produtos inovadores ao mercado. Se eu entendo como o envelhecimento da pele está acontecendo, consigo estudar um produto para ser aplicado – e como ele está revertendo os danos desse envelhecimento”, continua.
“Desenvolvemos plataformas para conseguir entender diversos modelos de doença de pele, para então descobrir os mecanismos dessas enfermidades e seus tratamentos”, finaliza.
O QUE EXATAMENTE É UMA PELE CRIADA EM LABORATÓRIO
Além de Ana Luiza e Franciane, Carla Munari também se uniu à EleveScience. Ela desenvolveu sua carreira acadêmica – mestrado e doutorado – na área de química biológica, além de ter pós-doutorado no Hospital do Câncer de Barretos (atual Hospital do Amor), quando trabalhou com oncologia molecular.
Hoje, atua na EleveScience como pesquisadora, em duas vertentes: uma plataforma para a avaliação da segurança toxicogenética de produtos incorporados no mercado e uma plataforma para avaliação da atividade antitumoral e a descoberta de novas moléculas para a terapia de câncer.
Não é preciso ter um doutorado para entender como o produto da EleveScience funciona (apesar de isso ajudar muito): a pele que se produz em laboratório é muito semelhante à pele humana normal.
A pele artificial tem as duas principais camadas – derme e epiderme, além de melanina, responsável pela pigmentação da pele.
O objetivo de um dos projetos da empresa, coordenado por Ana Luiza, é ter esse modelo de pele para avaliar os principais danos causados pela radiação solar.
“Durante a minha pós-graduação, percebi que existe uma carência de métodos para avaliar todo o espectro de radiação”, conta ela. “Os métodos feitos hoje levam em conta somente os efeitos da radiação UVB, que causa a vermelhidão, mas sabemos que existem muitos outros efeitos para a pele.”
Uma das maneiras de a EleveScience estudar esses efeitos e os produtos que podem preveni-los é justamente através dessa pele desenvolvida em laboratório.
A extensão da plataforma para a avaliação do modelo melanoma, capitaneado por Carla Munari, vem com o objetivo de trabalhar na descoberta de novas moléculas que possam ser incorporadas no mercado, desenvolvendo melhores terapias para o tratamento de tumores do tipo.
“Nós também almejamos o uso disso na medicina personalizada, trazendo melhores tratamentos para pacientes, com terapias autodirigidas para pacientes específicos”, diz Carla.
A PANDEMIA E OS CAMINHOS DA ELEVESCIENCE
A pandemia causada pelo novo coronavírus vai deixar marcas em todos nós – e não foi diferente com a EleveScience. “Como o foco do nosso 2020 foi o desenvolvimento dos projetos, e isso exige atividade presencial, tivemos certo impacto – e realizamos revezamentos para o uso do laboratório, sempre tentando cumprir nossos objetivos de desenvolver os projetos”, conta Franciane.
Por outro lado, a startup percebeu a tendência de as pessoas começarem a se cuidar mais, por estar mais em casa. “Isso chamou muito a nossa atenção”, revela a CEO da EleveScience – indicando que os próximos projetos da empresa devem trazer, a médio prazo, a busca de novas terapias e propostas para melhorar as condições da pele.
Segundo Franciane, a busca por métodos alternativos é cada vez mais importante no Brasil. “Eles são muito importantes para a ciência – ainda que existam muitas dificuldades no país para seu desenvolvimento”, diz.
“Algumas legislações já estão proibindo certos testes de segurança para o registro de produtos. A gente entende que há um mercado iminente para tecnologias como a que nós desenvolvemos”, ela continua.
“Dentre as vantagens, é possível entender os mecanismos envolvidos na segurança e a eficácia de um produto”, explica. “Se você aplicar um creme na sua pele, vai poder falar qual é o alvo dele – o que ele inibe ou estimula, por exemplo. Com isso, nós conseguimos entender muito melhor esses mecanismos.”
Se é possível entregar mais resultados e evitar algumas fases de testes em cobaias ou humanos – passando direto por uma série de protocolos de segurança e ética que, a partir de uma pele feita em laboratório, tornam-se desnecessários –, todos têm a ganhar: a indústria, os pesquisadores e, claro, os consumidores finais.