Já se vão mais de 50 anos desde que a primeira cirurgia de adequação genital em mulheres trans foi realizada no Brasil, em 1971. De lá para cá, a pesquisa científica e as técnicas relacionadas a esses procedimentos evoluíram, resultando em procedimentos mais seguros, precisos e com refinamento estético e funcional para as pacientes.
Um dos médicos brasileiros mais envolvidos com os avanços da cirurgia de adequação genital em mulheres trans atualmente é o cirurgião plástico Matheus Manica. Membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica e professor da Faculdade de Medicina do ABC, Manica desenvolveu uma técnica que oferece maior sensibilidade às pacientes, possibilitando uma vida sexual mais saudável e prazerosa.
“O Brasil sempre foi referência mundial na cirurgia plástica, mas na adequação genital, em específico, ainda não era. Isso porque o que se realizava era uma técnica mais antiga, em que apenas se invertia o pênis para fazer um canal vaginal”, afirma o médico.
Na inversão peniana simples, a sensibilidade e a estética ficavam em segundo plano, com a pele do pênis sendo usada para construir o canal vaginal. Já na técnica desenvolvida por Manica, tecidos do pênis que contêm importantes terminações nervosas são usados para criar a parte externa da vagina.
“A parte sensitiva é separada, o clitóris e os nervos da região são modelados para que a sensibilidade ocorra na vulva. Assim como é a sensibilidade de uma mulher cis, porque o canal vaginal em si não tem terminações nervosas específicas”, explica.
Em 2014, Manica passou uma temporada nos Estados Unidos estudando com a ginecologista Marci Bowers. A cirurgiã transexual americana é referência mundial em vaginoplastia. Além disso, acompanhou cirurgias com outro dos maiores especialistas em cirurgia de redesignação sexual, o tailandês Kamol Pansritum.
Na técnica de Manica, detalhada no artigo Refinamentos estéticos na aparência da vulva na cirurgia de adequação genital, disponível na Revista Brasileira de Cirurgia Plástica, são utilizados enxertos de pele da bolsa escrotal para revestimento do canal vaginal. No processo de cicatrização, a pele sofre metaplasia, um processo adaptativo em que um tecido passa por uma alteração celular se adaptando às novas condições.
“Com esse processo, o canal vaginal fica muito parecido com o de uma mulher cis. E dentre as vantagens estão o fato de quanto mais pele do pênis se usa no canal, menos se tem para trabalhar o exterior da vagina”, afirma o cirurgião.
Com menos uso de pele e tecidos do pênis no canal, Manica se concentra na construção de pequenos lábios próximos aos de uma mulher cisgênero.
“É, digamos, uma abordagem artística focada em esculpir o novo órgão, permitindo uma vida sexual mais saudável e prazerosa para as pacientes. A sensibilidade fica mais parecida com a de uma mulher cis, proporcionando um orgasmo mais demorado, longo e intenso”, explica Manica.
Em entrevista para FUTURE HEALTH, Manica comenta sua trajetória profissional até desenvolver a técnica, além de explicá-la com mais detalhes.
MATHEUS MANICA: Na época da faculdade, no internato, estava no pronto-socorro ajudando um residente e fui chamar o próximo paciente. À época, não tinha senha para os atendimentos e se chamava pelo nome, então peguei a ficha e chamei pelo Roberto. E nisso, se aproximou uma mulher alta, bonita, toda produzida. Quando ela chegou perto de mim, eu perguntei se o Roberto era marido ou namorado dela. E ela respondeu que Roberto era ela.
Antigamente, não se falava em transgênero, não existia isso na formação médica. Eu e o residente, que foi atendê-la, ficamos meio perdidos sem saber como chamá-la. Era um caso bem simples, uma dor de garganta, mas essa situação me marcou. Foi a minha primeira experiência atendendo uma pessoa trans.
Felizmente, de lá para cá muita coisa evoluiu nesse sentido. Ao mesmo tempo, eu sempre me interessei pela urologia, além da parte cirúrgica e estética, que é da cirurgia plástica. Quase fui urologista em vez de cirurgião plástico, e acho que tudo se encaminhou para me aprofundar nesse assunto. Então foi uma junção de todos esses interesses.
MM: Na verdade, acho que em medicina não existem inovações súbitas. Todo o conhecimento que vai surgindo está sempre apoiado nos ombros de quem veio antes. Então, a inovação acaba sendo progressiva – um progresso lento e contínuo. Ou seja, pequenos avanços pontuais, ao longo do tempo, acabam culminando nas mudanças.
No caso da redesignação sexual, as técnicas mais modernas potencializam tanto a parte estética quanto a parte funcional dos órgãos genitais.
Antigamente só se preocupava com a função. No caso da construção de uma vagina, por exemplo, bastava criar um “orifício” para a função sexual. Hoje em dia, já se prioriza a parte sensitiva, viabilizando o orgasmo, além da questão estética, da aparência da vulva e do bem-estar da mulher.
O foco dessa cirurgia hoje é a união de todos esses pontos para trazer satisfação para as pacientes.
MM: Utilizo a técnica de enxerto. Descrevendo de maneira bem simples, a pele do pênis é separada da estrutura central. Nessa estrutura central, tiramos a maior parte dos tecidos eréteis, separamos os nervos e os vasos dessa região.
Uma parte da glande é modelada para fazer o clitóris e a pele ao redor da glande é utilizada para a parte interna dos pequenos lábios. Essa parte que foi separada (nervos, vasos e a glândula) é colocada na parte externa para se tornar a parte sensitiva.
A pele do pênis, que em técnicas mais antigas era usada para o canal vaginal, é praticamente toda usada para fazer a parte externa dos pequenos lábios, proporcionando um aspecto estético melhor.
E, para o revestimento interno do canal vaginal, utilizamos enxerto de pele da bolsa escrotal, uma pele que era jogada fora antes. O canal urinário, que antigamente era simplesmente cortado, tem parte dele aberto e exposto para que a mucosa do canal faça parte da região da vulva, na parte interna dos pequenos lábios. Além disso, retiram-se os testículos nessa cirurgia, o que diminui a produção de testosterona das pacientes.
MM: O tempo médio é de 7h a 8h de cirurgia, dependendo da anatomia de cada pessoa e da quantidade de ajustes que precisam ser feitos. Muito desse tempo está relacionado ao refinamento estético e à reconstrução das estruturas da vulva: clitóris, capuz clitoriano, frênulo do clitóris, a placa vestibular, pequenos lábios, sulco interlabial e grandes lábios. Normalmente, a equipe médica é composta por um cirurgião principal, um cirurgião auxiliar, um médico anestesista, um instrumentador e um enfermeiro.
MM: As regras para essa cirurgia são definidas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e recomendadas pela World Professional Association for Transgender Health (WPATH). São elas: ser maior de idade; ter pelo menos um ano de transição no gênero feminino; ser acompanhada por uma equipe multidisciplinar, (que inclui profissionais de saúde mental, como psicólogo e psiquiatra; endocrinologista para fazer o ajuste da questão hormonal; cirurgião).
Com isso, é possível definir quem são as pessoas que realmente precisam realizar o procedimento de redesignação sexual. Obviamente, essa não é uma decisão exclusiva da equipe médica.
A própria paciente precisa entender se a cirurgia é para ela ou não, porque não são todas as pessoas trans que precisam fazer a cirurgia genital.
Então, esse preparo e acompanhamento prévios ajudam nesse sentido.
Em relação à recuperação, de uma maneira geral, as cirurgias reparadoras tem uma recuperação mais lenta do que cirurgias estéticas. Então, o tempo de recuperação gira em torno de três meses após a cirurgia.
É uma recuperação lenta. O primeiro mês é mais crítico porque requer mais cuidados com os curativos. Em cerca de três meses, a maioria das pacientes está totalmente cicatrizada e liberada para fazer atividade física e até ter relação sexual.
MM: Hoje, o resultado estético é muito melhor do que o da cirurgia feita 10, 15 anos atrás, e as pacientes têm maior satisfação sexual.
Existem estudos antigos, relacionados a técnicas mais simples como a inversão peniana e suas modificações, que já sugeriam que a sensibilidade, depois da cirurgia, era semelhante à de uma mulher cis. E isso também tem relação com a percepção cerebral, que influencia muito no prazer sexual: a autoestima; o bem-estar do próprio corpo; a pessoa finalmente se identificar com o corpo que vê; tudo isso influencia na satisfação sexual, na lubrificação e no orgasmo. Na prática clínica, as pacientes comentam que o orgasmo, depois da cirurgia, tende a ser melhor, mais intenso e duradouro.
MM: Depois que voltei dos Estados Unidos, em 2015, onde me especializei nessa área, fiz uma peregrinação pelos hospitais de São Paulo, porque pouca gente trabalhava com redesignação sexual e havia um certo preconceito. As próprias diretorias dos hospitais me perguntavam “mas o paciente entra homem e sai mulher?”, sem entender todo o processo.
À época, colegas médicos faziam comentários como “o Matheus só opera esse público gay”. Ou seja, havia toda essa confusão entre orientação sexual e identidade de gênero.
Mudar esse olhar é um trabalho de formiguinha, educando os próprios profissionais de saúde, alunos da saúde e a população em geral sobre o tema.
Aos poucos, a percepção da própria comunidade médica sobre essa cirurgia foi mudando. O número de artigos relacionados a pessoas transgêneros publicados nos últimos anos no PubMed tem aumentado em progressão geométrica.
E hoje há muitos eventos de educação médica relacionados a esse universo. Então, é muito legal participar desse progresso e acompanhar a evolução do conhecimento científico e até mesmo da sociedade em relação à inclusão de pessoas trans.
MM: Sempre haverá algum ponto a melhorar, alguma questão que podemos ajustar. O progresso é contínuo. Porém, existem novas vertentes sendo estudadas, como, por exemplo, utilizar o revestimento interno do abdome, o peritônio, como alternativa para o revestimento do canal vaginal. São técnicas ainda em estudo. Não sabemos se trarão mais benefícios ou riscos.
Já para um futuro mais distante, estamos observando a engenharia de tecidos. Imagine podermos produzir uma mucosa vaginal mais parecida com a de uma mulher cis ou, eventualmente, até construir a musculatura da vagina. Pensando em uma função muito maior, como o transplante uterino, quem sabe uma mulher transgênero poderá ter uma gestação. Mas isso é algo que provavelmente vai demorar muitas décadas…