Em oito anos, sete em cada 10 pessoas podem estar com excesso de peso no Brasil – e uma a cada quatro devem estar obesas. A projeção é do estudo “A Epidemia de Obesidade e as DCNT – Causas, custos e sobrecarga no SUS”, realizado por pesquisadores de diversas universidades do Brasil e uma do Chile.
O estudo mostra ainda que, por aqui, a prevalência do excesso de peso aumentou de 42,6% em 2006 para 55,4% em 2019. Já a obesidade quase dobrou: saltou de 11,8% para 20,3% no mesmo período.
O problema é ainda maior quando entendemos que o acúmulo excessivo de gordura corporal eleva o risco associado de mais de 30 doenças crônicas não transmissíveis, as DCNT – o que pode ter impacto muito severo para o Sistema Único de Saúde.
O que hoje é considerado uma epidemia já preocupava há muito tempo Durval Ribas Filho. Mais precisamente, desde que ele estudava medicina e fazia clínica médica.
“Eu tinha muito interesse na área de obesidade. Fiz um período de endocrinologia e percebi que a área de obesidade também era deixada de lado nela”, diz ele.
Foi assim que ele se interessou pela nutrologia. “Procurei uma área da medicina que me desse sustentabilidade médica para que eu pudesse tratar mais de pacientes obesos”, conta o atual presidente da Abran (Associação Brasileira de Nutrologia.
Especialidade relativamente recente, a nutrologia ainda carece de mais divulgação. E de mais entendimento em relação às diferenças da nutrição – para além do nome parecido, nutrólogos e nutricionistas desempenham funções complementares, por assim dizer.
Professor de nutrologia e endocrinologista, Durval explica nesta entrevista para Future Health sobre sua especialidade, a relação dela com a longevidade, as diferenças do nutrólogo e do nutricionista e muitas coisas coisas.
Ainda há um pouco de confusão em relação ao que exatamente faz o nutrólogo. Você pode nos explicar?
A nutrologia é uma especialidade médica que tem como definição fazer a profilaxia, o diagnóstico e o tratamento das enfermidades nutroneurometabólicas. Antes a gente até falava que a nutrologia tinha como função estudar a fisiopatologia dos nutrientes relacionados às enfermidades nutricionais. Hoje, a gente abrange essa área de enfermidades nutricionais neurometabólicas.
Como foi a sua trajetória para chegar à especialidade?
Ela começou depois que eu fiz clínica médica. De certa forma, eu tinha muito interesse na área de obesidade. Fiz um período de endocrinologia e percebi que a área de obesidade também era deixada de lado nela. Ou seja, a gente falava muito de diabetes, tireóide, suprarrenal, mas a parte de obesidade sempre foi deixada um pouco de lado.
Então eu procurei uma área da medicina que me desse sustentabilidade médica para que eu pudesse tratar mais de pacientes obesos – e vi nesse aspecto a nutrologia, porque envolve logicamente os nutrientes, a alimentação e a nutrição.
Só que, durante muitos anos, até 2010 praticamente, a nutrologia não era muito conhecida – muito pelo contrário. Até hoje, aliás, ainda tem pessoas que não sabem o que é. Então nosso trabalho é também divulgar a nutrologia como especialidade médica e a importância dela dentro do contexto da doença e da saúde. Eu sempre via estudos científicos, especialmente os chamados mega-trials, nos quais a associação entre uma boa alimentação e um determinado nutriente e longevidade era clara. Nós então começamos a fazer jornadas, simpósios, cursos de atualização e, evidentemente, o Congresso Brasileiro de Nutrologia.
Como a própria medicina passou a reconhecer mais a nutrologia?
A medicina, que antes tinha uma característica de só tratar com medicamentos, percebeu que de certa forma poderia também usar nutrientes – com suplementos alimentares, com intervenções nutricionais – para tratar. E também percebeu que o médico nutrólogo era muito importante dentro desse contexto.
Ele trazia um novo aspecto médico, que é a prevenção e também a intervenção através da nutrição.
Então acho que hoje as pessoas estão efetivamente muito mais preocupadas com a sua alimentação. Mas é claro que o médico nutrólogo, além do diagnóstico, usa esse viés nutricional com uma robustez muito maior. E, consequentemente, obtém melhores resultados.
Como foram os primeiros passos para difundir a área?
Acho que o início mesmo foi por meio de trabalhos científicos, de papers, que mostraram associações epidemiológicas via mega-trials, nas quais determinados nutrientes e tipos de alimentos e condutas nutricionais estavam associados positivamente a uma maior saudabilidade.
Eles estavam relacionados a menos doenças e mais longevidade.
A partir de então, os médicos começaram logicamente a adentrar nessa área concomitantemente, e isso foi muito muito importante. Os influenciadores digitais e a mídia social como um todo começaram a divulgar com mais desenvoltura esse lado nutricional, coisa que não era lá muito feita.
Qual o papel da nutrologia nas doenças crônicas?
Quando observamos as doenças crônicas, existe uma comparação que fazemos com uma pirâmide, que inclusive chamamos de pirâmide de tratamento de doenças crônicas: ela tem uma base e um pico. A base dela é a dietoterapia, que é dieta, nutrição, e exercícios físicos.
Quando qualquer doença crônica não responde de forma adequada, nós subimos um patamar nessa pirâmide, até mudanças cognitivas e comportamentais – como por exemplo uma psicoterapia de apoio.
Quando, mesmo assim, essa enfermidade não tem uma boa resposta a esses itens, subimos outro patamar, até a farmacoterapia. E quando assim mesmo não há uma resposta, mesmo utilizando todos esses itens como forma terapêutica, nós utilizamos o ápice, que são cirurgias bariátricas, metabólicas. Mas, como eu falei, esses outros procedimentos, como cardioversão, transplante, plasmaferese, são o ápice da pirâmide – e não só para obesidade, mas também para outras doenças crônicas.
E o que se sabe sobre a relação da nutrologia com a longevidade?
Agerasia é um termo antigo que a gente usa – somos a primeira sociedade de especialidade médica do Brasil a usar esse termo – que significa envelhecimento saudável, o oposto de senectude, que é o envelhecimento patológico.
A partir do momento em que a nutrologia iniciou suas atividades mais claras e mais robustas via trabalhos científicos, não só no Brasil como no mundo todo, a longevidade com saudabilidade – ou seja, a agerasia – se tornou o foco maior.
É evidente que depois dos 45, 50 anos começamos de alguma forma a ter doenças como diabetes, hipertensão, artrite, artrose, insuficiência cardíaca. Ou seja, o ideal é que a gente fique velho, mas o mais jovem possível. E dentro desse contexto, a nutrologia tem essa função no sentido global, não só da orientação, mas também da intervenção. Então eu acho que não por acaso, a nutrologia abrange todos os ciclos da vida: da intrauterina à idosa, passando pela infantil, adolescente e adulta. Todos os ciclos.
Como se dá a atuação do nutrólogo na maternidade?
Quando se fala de intraútero, falamos da epigenética – ou seja, a mamãe já pode transmitir ao seu bebezinho maior ou menor saudabilidade de acordo com a sua nutrição e hábitos. Doenças crônicas degenerativas já podem se manifestar intraútero, ou seja, fatores externos, como nutrição, alimentação, diretamente interferem para que esse bebezinho possa no futuro desenvolver doenças crônicas degenerativas. Isso foi visto pela primeira vez durante a Segunda Guerra Mundial, quando o exército nazista cercou a Holanda e este país deixou de ter abastecimento de comida. Com isso, as mamães grávidas ficaram desnutridas e seus filhos, quando adultos, apresentaram uma série de doenças degenerativas.
Qual é o perfil do paciente?
Num primeiro momento, o nutrólogo foi visto mais relacionado à terapêutica antiobesidade, e com isso então sempre foi forte o encaminhamento ou a própria procura de pacientes portadores de obesidade. Com o passar do tempo, talvez até mais recentemente, começou muito a divulgação da nutrologia esportiva.
A nutrologia esportiva é uma área mais específica, relacionada a jovens que praticam atividade física e que de alguma maneira querem melhorar o seu rendimento.
E, com o passar do tempo, observamos que os médicos não nutrólogos encaminham os pacientes portadores de diabetes, portadores de deficiências vitamínicas e de minerais para que seja feito um tratamento mais especializado, com melhor orientação. Agora uma coisa que às vezes passa despercebido é que o médico nutrólogo também tem uma atuação muito forte intra-hospitalar, através da nutrição enteral [feita por sonda] e parenteral [via intravenosa].
Você pode contar mais sobre essa atuação?
Um bom exemplo mais recente foi quando o presidente Jair Bolsonaro sofreu aquela facada, foi internado e foi alimentado através da via parenteral e depois enteral – e esse monitoramento foi feito totalmente por uma equipe de nutrólogos. Isso também faz parte do rol de atividades do médico nutrólogo, e muitas vezes passa despercebido, mas existem inclusive portarias da Anvisa que exigem a presença do médico nutrólogo.
Eu digo isso porque, como especialidade médica, a nutrologia atua em todos os ciclos. Ela tem três áreas de atuação oficiais pelo Conselho Federal de Medicina: nutrologia pediátrica, nutrologia enteral e parenteral infantil e nutrição enteral e parenteral adulta.
Para exercer, o médico, além de nutrólogo, tem que ter um certificado de atuação oficial nessas áreas, que vem por meio de uma prova, concursos, atividades curriculares. Infelizmente, muitos que se intitulam nutrólogos infelizmente não são. E hoje a melhor maneira de saber se ele é um especialista mesmo é entrar no site do CFM e buscar sua RQE [Registro de Qualificação de Especialidade].
Quais são as principais inovações dentro da nutrologia?
Até outro dia não se falava em bioimpedância e calorimetria direta, que são procedimentos de nutrologia de certa forma inovadores. Apesar de não serem tão recentes, eles foram gradativamente incorporados às atividades do médico nutrólogo no seu dia a dia. Logicamente, dentro da área de enteral e parenteral, com o apoio das indústrias alimentícias e farmacêuticas, aqueles produtos que eram feitos de forma artesanal hoje já podem ser comprados prontos.
Ou seja, pacientes que têm a necessidade do uso de suplementos alimentares e nutrição balanceada, por serem portadores de alguma doença crônica, já contam com soluções não-artesanais, que dão uma segurança muito maior.
Agora, talvez num futuro muito próximo, nós teremos a chamada genotipagem metabólica, obtida através de testes genéticos. Hoje eles já existem, mas ainda carecem de mais estudo. E isso vai servir até para que a gente possa orientar melhor os pacientes com relação ao que ele pode ou deve ingerir. Outra coisa, por fim, que está começando com mais intensidade, são os testes relacionados à alergia alimentar, coisa que não era muito comum, e hoje já se observa uma prática clínica muito mais forte e mais intensa, não somente à lactose ou ao glúten. E exames como a endoscopia digestiva e a colonoscopia digestiva, que são fantásticos para se olhar o trato digestório, já existiam, mas não faziam tanto parte da rotina dos médicos.
Muita gente não compreende exatamente a diferença entre o nutricionista e nutrólogo, além do fato de o nutrólogo ser um médico. Você pode explicar?
Lógico que uma diferença básica é que é preciso ter feito medicina para exercer a nutrologia. Mas vale lembrar que esses dois profissionais trabalham juntos: na maioria das vezes, todo nutrólogo tem um nutricionista trabalhando em conjunto.
Mas a melhor maneira talvez de definir isso é lembrar que, assim como na medicina existe o psiquiatra, existe fora o psicólogo.
Assim como existe o geriatra, existe e o gerontólogo. O fisiatra e o fisioterapeuta. A verdade é que um vai complementar o outro. Porque peguemos como exemplo a Doença de Crohn [enfermidade inflamatória crônica que pode afetar todo o sistema digestivo] ou a doença celíaca [patologia autoimune em que a ingestão de glúten causa danos no intestino delgado]: a partir do momento que o nutrólogo fez o diagnóstico, ele sempre pede para que haja acompanhamento de um nutricionista, que possa orientar esse paciente e dar boas dicas sobre sua alimentação.