Diversas empresas começaram suas atividades a partir de experiências, sejam elas boas ou ruins, vividas por seus empreendedores. Não foi diferente com a healthtech brain4care.
A história dessa startup, no entanto, iniciou cerca de nove anos antes de sua entrada no mercado brasileiro. Mais precisamente em 2005, quando o cientista brasileiro Sérgio Mascarenhas de Oliveira apresentou uma hidrocefalia de pressão normal.
A patologia, causada pelo acúmulo de líquido no interior do cérebro, provoca sintomas semelhantes ao mal de Parkinson. A doença pode ser revertida com a introdução cirúrgica de uma válvula para drenagem do líquido em excesso.
Na época, para avaliar o funcionamento da válvula, era preciso inserir cirurgicamente na cabeça um sensor de pressão intracraniana.
“Quando fiquei doente, abriram a minha cabeça para fazer o diagnóstico. Resolvi que precisava melhorar isso na saúde, que era muito atrasado”, disse o cientista, que morreu após uma parada cardíaca este ano, aos 93, à Folha de S.Paulo em 2018.
Foi a investigação de uma forma menos invasiva para se acompanhar a pressão intracraniana que originou a brain4care.
UM MÉTODO DE MONITORAMENTO NÃO-INVASIVO
A pressão intracraniana, também chamada de PIC, é a pressão exercida pelo crânio sobre o tecido cerebral, o fluido cerebroespinhal e o sangue circulante do cérebro.
A PIC pode ser alterada, entre outras coisas, por variações na pressão arterial – o que pode levar à redução ou interrupção de sangue, morte de tecidos, cefaleias, náuseas, visão turva ou dupla e zumbidos.
Durante um ano, Sérgio, que foi um dos idealizadores e primeiro reitor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e pesquisador do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), foi tratado como se tivesse Parkinson. Até que ele obteve o diagnóstico e furaram seu crânio.
“Ao questionar os médicos sobre a necessidade de perfurar o crânio em pleno século 21 para obter a pressão intracraniana, ele foi confrontado com a doutrina de Monro-Kellie, de 1783”, diz Plínio Targa, CEO da startup brain4care.
“Ela afirma que o crânio de um ser humano adulto é inextensível. Portanto, a pressão intracraniana só poderia ser avaliada por meio de um procedimento invasivo.”
Para provar que a doutrina estava equivocada, Sérgio utilizou em seu experimento um crânio emprestado de uma universidade, um balão de borracha, uma bomba retirada de um aparelho de medir pressão arterial e um extensômetro – sensor usado na engenharia para medir deformações em vigas e outras estruturas.
“O resultado dessa experiência provou que o crânio é expansível, derrubando um dogma da medicina de mais de 200 anos”, afirma Plínio.
Com base nessa descoberta, em 2008 foram iniciados estudos científicos. Os primeiros testes clínicos em humanos com um sensor minimamente invasivo aconteceram em 2009. Dois anos depois, em 2011, foi desenvolvido o primeiro sensor totalmente não invasivo.
Então, em 2014, surgiu o método brain4care, o primeiro capaz de permitir aos médicos interpretarem alterações de pressão e complacência intracraniana de modo não invasivo.
No mesmo ano, a empresa foi fundada por Sérgio e dois de seus alunos de mestrado na USP, Gustavo Frigieri e Rodrigo Andrade, com o objetivo de levar os benefícios da descoberta científica para o maior número de profissionais da saúde possível.
DE FABRICANTE DE DEVICE A PROVEDOR DE INFORMAÇÕES
Plínio Targa, que é filho de médicos, nunca tinha trabalhado com saúde, mas conhecia Sérgio desde os anos 1980, quando foi seu aluno na USP São Carlos.
Em 2015, Sérgio recorreu a ele e outro ex-aluno, Carlos Bremer, que atuavam com consultoria, para formatar a brain4care. No ano seguinte, os dois fizeram um investimento-anjo de R$ 1 milhão.
No começo da healthtech, o CEO conta que a ideia era ser uma fabricante de equipamentos. Mais tarde, os sócios identificaram que o melhor seria transformar a brain4care em um provedor de informações.
O resultado foi uma plataforma de monitoramento da complacência intracraniana através de um sensor, que é oferecido em forma de comodato com uma assinatura mensal, e um app.
“Não vendemos nada, oferecemos acesso a informações clínicas neurológicas”, esclarece Plínio.
De acordo com informações do próprio site da startup, a brain4care fornece ao neurologista e neurocirurgião dados adicionais que qualificam o diagnóstico, o que favorece a evolução e a segurança do paciente.
INVESTIMENTOS DIFICULTADOS PARA STARTUPS CIENTÍFICAS
Identificado o nicho que iriam percorrer, era hora de ir atrás dos investidores. Foi aí que descobriram que não é comum no Brasil fazer captação para startups de saúde de base científica.
Isso porque elas demandam investimentos robustos por prazo maior e ainda apresentam receitas com curvas menos exponenciais no curto prazo, quando comparadas com os demais segmentos.
“As opções que surgiram eram vender as patentes ou o controle societário. E como isso não era uma questão válida para os acionistas, optamos por criar um veículo próprio de captação – que não cobra fee nem performance – para cruzar os primeiros cinco anos de investimentos. E assim avançamos”, lembra Plínio.
Foram realizadas duas rodadas de captação, onde aproximadamente 10 milhões de dólares foram levantados.
“Nosso modelo de negócio se assemelha ao de um serviço de streaming, como Netflix e tantos outros, no qual o cliente paga uma mensalidade [atualmente R$ 3.800 por mês] e pode usar quanto quiser, sem nenhum custo adicional”, explica o CEO.
Em 2019, a startup ganhou outra parceria importante: Laércio Cosentino, fundador da gigante de tecnologia Totvs, passou a fazer parte do conselho da brain4care.
De acordo com o CEO da healthtech, o convite veio após a decisão de que o modelo de negócio seria o licenciamento da plataforma de software, e não medical device.
“O Laércio é uma grande referência como empreendedor, empresário e investidor que demonstra interesse empresarial em inovação na área da saúde. Ele sempre traz sua percepção dos desafios do mercado e da estratégia no longo prazo”, afirma.
DESTAQUE NÃO SÓ NO BRASIL
O CEO reitera que a brain4care é uma iniciativa de inovação aberta para pesquisas científicas e que, atualmente, possui mais de 80 pesquisas entre acabadas e em andamento.
“O resultado disso é que estamos presentes em inúmeros centros de pesquisa no Brasil, Estados Unidos e Europa”, diz.
“Além disso, alguns centros de pesquisas muito importantes, que não podemos divulgar antes das publicações, descobriram e validaram questões muito importantes sobre nossa solução. Iniciaremos 2022 no radar científico da neurociência global”, comemora.