Filho de mãe alemã e pai pernambucano, o infectologista especialista em micologia – ramo dedicado ao estudo dos fungos – Filipe Prohaska Batista, 39, é mais conhecido pelo sobrenome “difícil” da mãe, tanto no meio acadêmico quanto no mercado de saúde.
Filipe é um dos fundadores e o diretor médico da Infecto Associados do Recife – empresa responsável pelo primeiro protocolo sanitário de retorno a atividades escolares pós-Covid-19 para a Rede Damas Educacional, que se tornou referência para os estados de Pernambuco e São Paulo.
Ele é também professor na Faculdade de Medicina de Olinda e responsável pelo ambulatório de pacientes imunossuprimidos não-ligados ao HIV do Hospital Universitário Oswaldo Cruz, da Universidade de Pernambuco.
Entusiasmado e afetuoso, na entrevista concedida a Future Health Filipe demonstrou conhecimento e carisma, o que dá uma dica de por que foi eleito LinkedIn Top Voice no ano passado.
Ele só se entristece ao comentar sobre a tese de doutorado em Histoplasma e Transplante Renal, iniciada na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) em 2017, com o renomado professor Arnaldo Lopes Colombo (segundo Filipe, o maior micologista do mundo) e interrompido pela suspensão de sua bolsa de estudo devido à pandemia.
“Não sabemos se irá voltar… Nem sei se posso dizer que sou aluno da Unifesp”, lamenta.
Mesmo assim, Filipe continua a ser acionado para dar palestras sobre antifúngicos, além da intersecção entre micologia e onco-hematologia – especialidade que trata dos distúrbios que interrompem a produção de células sanguíneas, de leucemias, linfomas e mielomas.
“Os cânceres de linfoma e leucemia são muito relacionados com infecção fúngica”, explica.
“A parte hematológica é a mais relacionada, mas, com os imunobiológicos novos, a oncologia também tem entrado nessa seara. Aí o papel dos micologistas tem crescido muito dentro da oncologia clínica.”
Leia abaixo os principais trechos da conversa com Filipe Prohaska.
Onde você nasceu e cresceu?
Nasci e me criei em uma cidade do interior de Pernambuco: Vitória de Santo Antão [distante 46 quilômetros da capital, Recife]. Meus pais foram os primeiros médicos da família [o pai é radiologista e a mãe, pediatra]. Nasci logo após eles terminarem a faculdade, minha mãe tinha 24 anos, e eles moravam de favor, no primeiro andar de uma farmácia, que existe até hoje. Era uma casa de dois quartos, uma sala e uma cozinha. Eu morei ali até os 4 anos de idade e minhas primeiras fotos de infância são lá. Ao lado da casa, tinha o Corpo de Bombeiros da cidade e uma quadra, onde eu brincava de puxar carrinho. Na época tudo era um descampado, um bairro afastado da cidade. A farmácia era no meio do nada. Hoje em dia, é tudo muito construído.
Você alguma vez cogitou não ser médico?
A vida toda eu queria ser médico. Nunca me vi em outra profissão. No momento, minhas duas irmãs estão fazendo medicina! A irmã do meio já é advogada, a mais nova é engenheira e está na medicina pra fazer ortopedia e projetar braços robóticos. Elas estão incorporando e vendo na medicina um mar de oportunidades, como foi pra mim.
Você fez residência em medicina intensiva antes de infectologia. E depois foi estudar fungos, por quê?
Pensei em fazer infectologia em 2008. Eu trabalhava muito com UTI, não entendia nada de antibiótico e achava que, se fizesse uma residência de infecto, aprenderia muitas coisas de meu dia a dia. Entrei na infectologia totalmente despretensioso. Aí fui apresentado ao mundo que é a especialidade.
Eu tinha muita dúvida em qual área de infecto eu ia fazer, porque gostava de tudo.
Pensei em neuroinfecção [doenças infecciosas que acometem o sistema nervoso central – cérebro, estruturas vizinhas e medula espinhal – ou o sistema nervoso periférico – nervos e suas conexões – e podem ser provocadas por vírus, bactérias, fungos e protozoários], controle de infecção. Até que fui a um evento em 2009, o Infocus. E sabe aquelas perguntas que eles fazem ao final das aulas nos congressos, que você aperta o botãozinho pra responder? Teve uma aula em que eu errei todas as respostas! Eu achei interessante. Era sobre infecção de imunossuprimidos [quem tem o sistema imunológico enfraquecido]. Aquilo foi para mim uma provocação espetacular.
Aí comecei a ir atrás de pessoas que trabalhavam com isso, fui a eventos e o que mais se destacava era infecção fúngica. Percebi que meu conhecimento era zero.
Quando já estava concursado na UPE e decidi migrar para micologia, ouvi que era uma idiotice abrir um laboratório de fungos aqui, porque não havia fungos em Pernambuco. Hoje, o ambulatório de micologia na UPE é o segundo maior do Brasil. Somos o que mais dá mais dinheiro à universidade, junto com o de transplantes.
Como surgiu a história de virar LinkedIn Top Voice em 2020 [programa criado para dar visibilidade a perfis de usuários que compartilham bastante conteúdo, que trazem credibilidade e engajamento para a rede social e, por consequência, se tornam referência em determinada área]?
Eu tenho LinkedIn desde 2014. Falava até bastante sobre micologia lá, mas para um público menor. Entre 2014 e 2019, o meu conteúdo era altamente especializado, era para um microambiente. Quando veio a Covid-19, comecei a promover muitas discussões sobre os estudos científicos e sobre a realidade de como era a linha de frente de enfrentamento à doença.
Minhas publicações em 2020 foram discussões críticas sobre os estudos e como estavam sendo realizados aqueles em que nós da UPE fazíamos parte – como o Solidarity da ONU.
Havia muita desinformação na época e fizemos a discussão do que era real, de como era feita a investigação, em quanto tempo sairia uma ideia de tratamento. Era para tentar controlar as fake news e trazer informação de qualidade. Depois de alguns meses, o LinkedIn entrou em contato comigo para dizer que o acesso à minha página estava muito bom, que os dados estavam interessantes e que o algoritmo tinha disparado. E realmente, vinha muita gente tirar dúvidas.
Seu objetivo era falar com o público em geral ou era falar para profissionais da saúde, que têm um conhecimento diferente dos leigos?
Em 2020, a ideia era expandir para o macroambiente. Já fazia pensando no público leigo mesmo, porque a desinformação no começo da pandemia era muito grande. A ideia era mostrar como era a vida dos pesquisadores, tentar desmistificar e dizer que não tem resposta rápida e fácil. Comecei falando dos estudos, depois passei a falar como funcionavam os vírus de coroa.
Fiz comparação entre os vírus de coroa e os demais para dizer que o SARS-CoV-2 [que causa a Covid-19] deveria seguir esse rito também.
Isso culminou com o reconhecimento Top Voice. Foi até uma surpresa para mim. Quando estava na reunião com os editores do LinkedIn, Guilherme Odri e Cláudia Gasparini, a primeira pergunta que fiz a eles foi: “Como vocês me encontraram?” Eles me disseram que quem havia me encontrado tinham sido os algoritmos, porque as pessoas estavam me procurando. Me contaram que havia perfis com 100 mil seguidores que tinham menos visitas diárias do que eu.
Você falava sobre esses conteúdos com colegas ou alunos? Às vezes, o boca a boca ajuda na divulgação…
Eu falava, mas são poucos os alunos que tinham perfil lá. LinkedIn é uma rede muito restrita na área de saúde. Acho que este é um ponto que me facilitou. Minha concorrência foi pequena. Se você for no Instagram, a quantidade de contas de profissionais de saúde é muito alta. O Instagram é onde vendo minhas consultas, é por onde movimento meu consultório. O LinkedIn é o que movimenta a minha empresa, a Infecto Associados do Recife, que tem ticket muito superior ao do consultório.
Montei a IAR em 2017 com a ideia de ser um serviço de infectologia mais amplo, trazer biossegurança para a comunidade e não ser restrita a hospitais.
Quando explodiu a Covid-19, não dava para imaginar que isso se aceleraria absurdamente. A ideia do perfil era levar os serviços que a minha empresa prestava para empresas que estavam em crise. E, naturalmente, tomou outra proporção. Aí, a gente alcançou as escolas com o trabalho de retomada das aulas. Apresentamos esse projeto no LinkedIn e isso deve ter alavancado também o número de procura. Imagine quantos leigos estavam com dúvidas a respeito da volta à escola dos filhos ou com medo de retomar o trabalho presencial? Acho que isso desencadeou a explosão do meu perfil pessoal em 2020.
Qual é a área de atuação da IAR?
Ela nasceu em um guardanapo em 2009, em um almoço durante a residência, em que eu e o meu sócio Carlos Tadeu de Oliveira Leonidio escrevemos como poderíamos entrar em um mercado altamente competitivo. O que existia na época era um serviço de infectologia somente para assistência no local, nunca para prevenção. Não se montavam protocolos, não se montavam fluxos, não se vendia serviço especializado para a sociedade e não se fazia telemedicina. Nós éramos médicos residentes e não tínhamos nome para vender isso tudo… nem cases.
Então, tivemos de nos especializar e ganhar destaque antes de podermos nos projetar.
Eu fui para o lado de transplante de medula óssea. Meu sócio foi para o de transplante de órgão sólido [aqueles localizados no tórax e no abdômen]. Eu comecei a trabalhar com fungo, ele com bactéria. Começamos a entrar nesse mercado vendendo algo diferente quando montamos a Real Infecto, em 2010. Fomos o primeiro serviço de infectologia de um hospital privado. Isso já era uma novidade. Mas não podíamos vender esse mesmo serviço em 2017 na IAR, estaríamos atrasados. Aí entramos com a questão de tecnologia, telemedicina, montar protocolos e fluxos institucionais, mostrar análises de custo e efetividade, levantar gastos, diminuir glosas [faturamentos não recebidos ou recusados nas organizações de saúde, por problemas de comunicação entre clínicas e convênios. Em geral, as glosas acontecem quando as informações sobre um atendimento, fornecidas pelo prestador, não batem com o registro no banco de dados do plano de saúde].
Tudo para fazer diferente e porque não há grupo especializado nisso. Há grupos especializados em prestação de serviço, em ir lá dar parecer e evoluir o paciente, sem fazer custo de efetividade e nem protocolos.
Houve um diretor do Hospital Santa Joana Recife que comprou essa ideia. Para se ter uma ideia, antes do nosso primeiro projeto – o protocolo de antifúngico do hospital –, a perda anual com antifúngicos era de R$ 340 mil. Depois que iniciamos o protocolo, em 12 meses, a glosa passou para R$ 8 mil. Daí passamos a fazer isso com medicação de alto custo, entramos nas imunoglobulinas. Aumentamos o consumo de imunoglobulinas no hospital e a glosa foi para zero e se mantém assim de 2017 para cá. Nosso concorrente teve R$ 800mil de glosa de imunoglobulina.
O custo de efetividade explodiu dentro de um microcosmo específico que tínhamos montado.
Foi quando o Grupo Oncoclínicas, que presta serviço ao Santa Joana, bateu na nossa porta. Eles pediram para que nós transformássemos o grupo deles também. Começamos a fazer os protocolos de imunoglobulinas na Oncoclínicas e hoje fazemos as visitas hospitalares do grupo aqui em Pernambuco. Em 2020, fui puxado para lá e levei a empresa junto. O grupo pensa, inclusive, em nos incorporar.
No fim de novembro, você lançou sua newsletter no LinkedIn, “37 não é febre”. Por que esse nome?
Quando chegamos às escolas, fizemos o perfil da IAR no Instagram para os pais nos alcançarem e quando eu montei a newsletter no LinkedIn tinha de ser para o meu público leigo. E é muito comum o paciente dizer: “Estou com febre… com 37 graus”. A gente não pode desmentir o paciente, porque quebra toda a relação, perde completamente o vínculo. Eu digo: “Veja bem, a temperatura não está tão alta… Está dentro de uma área de segurança. Não precisamos nos preocupar.” Com o nome, quis dar um recado delicado e carinhoso. Toda vez que a pessoa ler a newsletter vai entender [risos].
Você disse também que quer tratar a infectologia com bom humor. Vai continuar a falar mais de Covid-19 ou de outros surtos e epidemias?
A ideia é falar sempre sobre algo que está na mídia. Agora é a Influenza. Veja quantas dúvidas há sobre H3N2 Darwin [subtipo do vírus da Influenza A, frequentemente identificado em crianças, idosos, mulheres grávidas e puérperas que requer um isolamento de sete dias para evitar contaminar outras pessoa] e H1N1 [variação do vírus Influenza A responsável pela gripe suína, que pode ser tratada com medicamentos como o Tamiflu]. Recentemente, teve a intoxicação por ostra. Quando está em evidência na mídia, a adesão [aos conteúdos] é muito rápida.
Então, você precisa ter um conteúdo pronto, de qualidade, rapidamente, porque é tudo muito efêmero. Você tem de pegar o bonde andando. Tem de ser rápido, prático e com conceitos para leigos.
É muito difícil transformar informação de qualidade para leigos incorporarem. É muito complicado, porque tem de pegar o básico e se você falar muito perde o foco. Tem que ser interessante também para o público da área de saúde que te acompanha – eu sempre coloco algum tipo de curiosidade da medicina, que acaba sendo interessante para o leigo também. Sempre tem de trazer uma informação científica e outra leiga. E o bom humor é uma consequência, porque quando as coisas são tratadas com bom humor são melhor absorvidas. Se você for ler os comentários, sempre tem alguma tirada…
Você escreveu em um artigo de 2020 que “a peste bubônica aconteceu por causa da falta de saneamento básico; a gripe espanhola pela guerra e as trincheiras; a epidemia de H1N1 pela estrutura habitacional e diferenças sociais do terceiro mundo; e que a principal causa do coronavírus foi a fome!”. Ainda hoje, pensa assim?
A fome e a invasão do ser humano cada vez mais no meio ambiente é o que tem trazido essas doenças. E a Influenza [causada pelos vírus A (associado a epidemias e pandemias e às estações climáticas mais frias), B (costuma causar quadros mais brandos) e C (mais raro), que circulam concomitantemente a cada ano] não é diferente: há a gripe aviária [causada pelo vírus A H5N1], a gripe suína [causada pelo vírus A H1N1].
Todos esses vírus sofrem mutações nos animais e entram no nosso mundo pelo consumo.
O próprio HIV [vírus causador da Aids] foi pelo provável consumo de carne de macacos na África. Todos os grandes vírus de faixa pandêmica entraram pela introdução alimentar. A alimentação pode ser por uma questão de necessidade ou por uma questão exótica – como no caso dos pernambucanos que adoram comer a formiga tanajura: basta comer a tanajura errada para entrar um vírus no ambiente humano. Mas isso é mais comum quanto mais próximo você chega dos mamíferos, porque o vírus fica mais mutável.
Aves e mamíferos são as principais causas de mutações para entrada no nosso meio [humano].
Veja que sempre tem cativeiros envolvidos, caso das aves e suínos. Ou no caso da introdução alimentar de cobras, pangolim [mamífero em extinção apontado como hospedeiro intermediário na transmissão ao homem do novo coronavírus], tatu e morcego. Acaba havendo mutações de vírus diferentes que trouxeram circunstâncias pandêmicas para o nosso meio. As grandes mudanças na história foram adaptações pós-crises sanitárias. A grande questão hoje é: qual vai ser nosso papel pós-pandemia de Influenza e de Covid-19. Se você for ver, nas pandemias atuais, o problema é o mesmo: introdução alimentar. Porém, gripe aviária e gripe suína não surgiram por fome, diferentemente do coronavírus.
Você quer dizer que as gripes aviária e suína têm a ver com a forma pouco sustentável de produção de alimentos?
Sim. Às vezes, a ração está contaminada. O animal criado em cativeiro acaba tendo mudanças genéticas. Ele se contamina mais facilmente por estar aglomerado e não estar ao ar livre. Nos casos de Influenza, as contaminações são muito diferentes do que nos casos de coronavírus, que é mais selvagem. Influenza tem mais a ver com cativeiro. Nós estamos criando os mecanismos para introdução de um vírus mortal dentro da sociedade!
No começo de 2021, quando a segunda onda de Covid iniciava, você comentou que “além da vacina, nós precisamos rever todas as nossas posturas”. Referia-se à postura humanitária, à forma de produção de alimentos? E hoje, de que precisamos?
É uma coisa muito ampla. Por exemplo, nosso conceito de escolas. Os americanos e europeus já trabalham com o conceito de escolas abertas, com circulação de ar e estudo integral. Aqui no Brasil, a educação é feita como negócio no mercado privado e não é feita como prioridade no Estado. O que acontece é: não há escola para todo mundo, então, eles dividem em dois turnos – manhã e tarde. Ou seja, não é um ensino de qualidade e é todo mundo engavetado em um lugar fechado para poder ter o máximo de pessoas lá dentro e faturar mais ou dispor de mais vagas para a população.
Então, nosso modelo educacional está completamente errado, seja no privado ou no público.
Há uma discrepância entre eles de material ofertado e de cobrança realizada, mas, como serviço educacional, ele é totalmente incompatível com o restante do mundo. Nem preciso dizer que o Brasil não é referência em educação. O segundo ponto é a nossa estrutura humanitária. O Brasil é um país muito desigual e você não pode ser hipócrita e negar. Eu moro em Recife, a capital do Nordeste – aqui tudo é hiperlativo [risos]. Há um hospital “de primeiro mundo” de um lado da rua e de outro lado há um hospital “de África subsaariana”.
Temos 48% da população sem saneamento básico. Sabe quando havia isso? Na Idade Média, em 1200!
E continuamos a ter isso, no século 21, mesmo na capital do Nordeste. Enquanto acharmos isso normal e não tomarmos posturas para mudança disso, situações de discrepância como essas continuarão a existir. E a periferia brasileira é um desafio porque não é só a falta de saneamento básico, falta tudo. Não existem ruas. São vielas, com casas de dois cômodos para 8 pessoas. Então, quando você tem a introdução de um vírus pandêmico em um contexto de periferia, a doença entra com violência. E claro que essa população de periferia entra em contato com a população de centro, mas a exposição e vulnerabilidades maiores, até pela dificuldade de acesso ao sistema de saúde, está toda na periferia. Enquanto você achar que isso é normal, não vai haver mudança de estigma.
É a mesma coisa com a vacinação no mundo. O Brasil tem terceira dose para boa parte da população adulta e a África não tem nem um terço dos profissionais da área de saúde vacinados.
Aí o continente vira um novo celeiro de variantes [do vírus] que assusta o mundo inteiro, por falta de vacina e de equidade de distribuição das vacinas. A Covid-19 mostrou que o mundo toma muitas condutas individuais e sofre com as consequências do restante do mundo. A [variante do coronavírus] ômicron é o maior exemplo do que um vírus pode desencadear na desigualdade social.
O que está acontecendo nos congressos de infectologia da atualidade? Só se fala de Covid-19 ou há outros pontos de atenção?
Quando em 2009, se falava de pós Influenza A H1N1 [a segunda das duas pandemias envolvendo o vírus embora cepas diferentes; a primeira foi a gripe espanhola de 1918, que matou entre 50 e 100 milhões de pessoas em dois anos], sabíamos que ele retornaria em algumas décadas. Aí o coronavírus furou a fila, mas a gente não imaginava que os dois vírus iriam se sobrepor.
A Influenza é um problema para as próximas décadas por causa de sua alta taxa de mutação. Isso é esperado. Vai entrar uma variante que a vacina não irá cobrir… Isso acontece hoje.
Após a Gripe Espanhola, demorou 100 anos para termos o H1N1 de volta. E neste século, demorou apenas 12 anos pra ele retornar! Essa será nossa história nas próximas décadas. Só que nesse meio tempo, apareceu o coronavírus pandêmico SARS-CoV-2, causador da Covid-19 – o terceiro vírus que tem um reflexo de epidemia, mas o primeiro que tem um processo pandêmico. Já tinha tido o SARS-CoV detectado em 2002, na China, causador da Síndrome Respiratória Aguda Grave; o MERS-CoV, detectado em 2012 na Arábia Saudita, causador da Síndrome Respiratória do Médio Oriente… Só que sempre muito localizado. Nada com uma proporção como a da Covid-19.
Provavelmente, teremos outro coronavírus-do-mal que vai surgir, talvez não na mesma frequência que o Influenza, mas são décadas que prometem…
Os próximos 50 anos prometem por alguns fatores: diminuição da quantidade de proteína ingerida, porque a população mundial está crescendo absurdamente; mudanças climáticas, o que impacta na produção de alimentos e nos faz invadir mais as áreas de mata; e o encarecimento dos serviços de saúde. Tenho a impressão de que será cada vez mais difícil o acesso – o aumento dos planos de saúde é o maior exemplo disso. A tecnologia já avançou muito, mas não barateou o suficiente.
Se pudesse dar uma sugestão para os gestores que querem começar a combater isso tudo, qual seria?
Eu queria dar a cada gestor de nosso país o grande livro de John Barry, “A Grande Gripe”. Um livro que me inspirou muito tanto nos cuidados, quanto na convivência com a Covid-19. Muitos dos protocolos que montamos para escolas, escritórios e shoppings nasceram da visão que o mundo teve no enfrentamento da Gripe Espanhola em 1919, nos acertos e erros. Foi um livro que me ajudou muito.
Tem outro livro espetacular do Bill Gates, “Como evitar um desastre climático”, em que faz um estudo de como podemos sobreviver até 2050, parando de fazer as besteiras que fizemos até agora.
O que pode ser feito com as tecnologias atuais e o que poderá ser feito com as tecnologias futuras. Ele é uma das pessoas que mais têm impacto na saúde hoje. Oitenta por cento do financiamento de estudos sobre HIV é do Bill Gates. A cura da hepatite C foi financiada por Bill & Melinda Gates Foundation, boa parte dos novos quimioterápicos para cura do câncer, surgidos nos últimos 15 anos vieram de estudos financiados por ele. Então você tem de ler esse cara para entender o que está acontecendo e o que podemos fazer para mudar.
Você correlaciona a saúde com a questão social?
Sem dúvida. Não adianta falar de saúde sem falar de social. As doenças começam na periferia e vão para o centro. Não se pode ignorar isso. E não adianta dar saúde para o centro e ignorar a periferia. Não é lógico dispor de saúde assim. Isso não é universal, é tendencioso, é pra quem pode. As doenças virais e infectocontagiosas mostraram que você não precisa ter dinheiro para ter saúde. Você precisa ter saúde! Se você não tem saúde, não adianta o dinheiro que você tem.
Temos de avançar muito em tecnologia. Por exemplo, implementar coisas básicas como prontuário eletrônico universal e telemedicina no SUS traria uma economia astronômica ao sistema.
Hoje, as prefeituras gastam dinheiro para levar o paciente para a capital. Isso é um absurdo que poderia ser resolvido com um médico generalista na cidade de origem tendo orientação de um especialista a distância. Minha gente, não existe a pessoa pegar um ônibus para trazer exame! Ou ter de repetir exame porque perdeu os resultados. Se alguém fizer um investimento sério no SUS de prontuário eletrônico e de telemedicina, isso trará um benefício gigantesco.
Acredito também na necessidade de se criar grupos de saúde especializados em solução de conflitos.
Quando faltou oxigênio em Manaus [em janeiro de 2021, no início da segunda onda de Covid-19], se nós tivéssemos um grupo de saúde para atuar nacionalmente em regiões de conflito e tratar aquilo ali, teríamos resolvido muita coisa. A própria epidemia de Influenza A em dezembro, no Rio de Janeiro: se houvesse um grupo para ajudar, orientar e treinar… Infelizmente, todos os governos foram tendenciosos para um grupo pequeno. Não vou nem comentar sobre a atuação do governo atual, porque está na mídia e todo mundo sabe o que está acontecendo. Mas na epidemia de H1N1, com o governo anterior, também foi uma vergonha. Também se mudou bula de remédio sem autorização, deixaram vencer lotes de Tamiflu, não se fazia teste de Influenza para negar a doença, não se tratava os pacientes da forma adequada. O discurso era diferente, mas as finalidades eram semelhantes.
O que precisamos é de um Ministério da Saúde e de uma Anvisa sem ideologias, focados em resolver problemas e não em alimentar o que é estabelecido pelo governo vigente.
Não existe direita e esquerda em saúde! O que existe é um problema em relação a um patógeno [agente causador de doença] e a solução desse patógeno. Isso é que precisa acontecer. Temos de revolucionar isso que falta. Vou falar algo que vai queimar minha língua, mas é um fato: um economista foi a pessoa que mais revolucionou a medicina no Brasil, ao enfrentar e tratar o HIV. Foi o projeto que Fernando Henrique Cardoso fez com José Serra, da luta contra a OMC [Organização Mundial do Comércio] para quebra das patentes. É um projeto que existe até hoje e é a maior referência no mundo. Não é que eu vote neles, mas eles fizeram certo.
Precisamos de mais políticas públicas desse tipo. E para enfrentamento de pandemia são projetos de longo prazo.
O último projeto de longo prazo aprovado foi a luta contra o HIV. Depois disso não existiu mais nada. Parece mentira, mas o último protocolo de doenças fúngicas é do governo de FHC. Estou falando em fungos porque é a minha área, mas, se você for cascavilhar, vários dirão a mesma coisa. O último inquérito populacional foi de 1996[Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS-1996)]. Ou seja, não tem existido projeto perene de saúde no Brasil desde o século passado. A gente quer um projeto de saúde para o país, independente de ideologia. Que mudem os governantes e o projeto não seja perdido.