Tratar pessoas – principalmente bebês – com doenças raras de herança genética é a missão a que a médica Elizabeth Lemos Silveira Lucas se dedica há mais de 30 anos. Com empenho e sempre atrás das inovações em sua área, a gaúcha de 58 anos, nascida em Santa Maria, comandou a implantação de uma nova terapia de tratamento para atrofia muscular espinhal (AME) no Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
Em 21 de dezembro, foi feita a primeira aplicação numa paciente que estava com 1 ano e 4 meses de idade – era Ísis Mariana Cardoso Labres, cuja família mora em Torres, no litoral norte gaúcho, e recorria ao SUS por não ter convênio médico.
Para a menina, os custos hospitalares foram bancados pelo Moinhos de Vento. E a gigante farmacêutica Novartis, fabricante do Zolgensma (o novo medicamento utilizado), doou a dose através de seu Programa Assistencial de Acesso Expandido – no qual a doutora Elizabeth e o hospital se credenciaram, inscrevendo cinco pacientes com AME. Ísis foi a selecionada para fazer a terapia.
Esses auxílios foram fundamentais para a criança e sua família. Afinal, o custo da dose do medicamento é extremamente alto (cerca de R$ 12 milhões).
Além do Moinhos, apenas outros três hospitais no Brasil já têm capacidade para realizá-lo. Um deles é o Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, onde foi realizada a primeira terapia do tipo no Brasil, em agosto do ano passado. A recebida por Ísis foi a primeira no Sul do país.
A AME é uma doença neurodegenerativa que leva à falência respiratória e afeta um em cada 10 mil recém-nascidos, segundo a Anvisa. Ela é classificada em quatro tipos. A AME mais comum (e mais grave) é a Tipo 1, com que a menina Ísis foi diagnosticada aos quatro meses de idade.
Elizabeth formou-se em medicina na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) em 1987. A seguir, foi residente de pediatria por dois anos, pré-requisito para passar para genética clínica, na qual fez residência por outros dois anos.
Fez mestrado e doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e é membro titular da Sociedade Brasileira de Genética Médica e Genômica (SBGM). Em 1993, abriu sua clínica particular em Porto Alegre, na qual já atendeu mais de 3 mil famílias desde então. E integra o corpo clínico do Hospital Moinhos de Vento.
Para a seção Profissionais de Future Health, Elizabeth respondeu a perguntas em conversas por e-mail e videoconferência enquanto vivia em casa sua reta final de quarentena após contrair Covid-19. Ela falou sobre o novo tratamento para a AME, sua trajetória como geneticista e as projeções para sua área.
Como você se tornou especialista em genética?
Durante a graduação e meu estágio na pediatria do Hospital Universitário, me aproximei de um caso raro, uma criança com síndrome de cutis laxa, que causa frouxidão da pele e dos ligamentos. Ela tinha a pele extremamente frouxa e, por causa disso, tinha problemas respiratórios. Ninguém sabia o que ela tinha. Na época, 1985, a gente não tinha exames genéticos. Estudei o caso e fiz meu primeiro diagnóstico clínico-genético.
Como foi o processo para a aplicação da nova terapia gênica para tratamento de Atrofia Muscular Espinhal (AME) no bebê de 1 ano e 4 meses, realizada em dezembro no Moinhos de Vento?
No final de 2019, acessei o site do laboratório AveXis, braço da Novartis dedicado ao desenvolvimento de terapias para doenças raras. Recebi informações sobre como poderia inscrever pacientes brasileiros no programa MAP (do inglês managed access program). A AveXis verificou meus requisitos e pediu para registrar uma instituição para aplicação. Então, eu e o Hospital Moinhos de Vento recebemos uma “aprovação” para incluir pacientes no programa.
As inscrições para o programa MAP deram a cinco pacientes a oportunidade de participar de uma randomização mundial que iria selecionar 100 pacientes no mundo inteiro para receber a medicação Zolgensma.
Dos cinco pacientes inscritos, essa menina foi contemplada com o medicamento. Ela pertencia ao SUS. Enquanto fazíamos mais testes laboratoriais para ver se ela realmente podia usar a medicação, decidimos que seria fundamental isentar a paciente dos custos hospitalares para realizar a infusão. Então ela recebeu sem custo o medicamento da Novartis.
Formamos uma equipe de médicos, enfermeiras e farmacêuticos para fazer a única infusão endovenosa do medicamento, que “transporta” um gene saudável para o organismo da criança.
A farmácia do hospital desenvolveu toda a logística para receber o medicamento importado congelado e, junto com a Novartis, atestou que o Zolgensma estava em condições ideais de uso. A enfermagem foi responsável pela aplicação da medicação, que deve ser feita durante 60 minutos por bomba de infusão. Eu tive o papel de checar a prescrição da medicação e acompanhar clinicamente a infusão. A dose é enviada especificamente para o peso informado do paciente – no caso da nossa paciente, ela tinha diminuído de peso e tivemos que reduzir o volume de infusão.
O que é a AME?
Quando eu era pediatra, as crianças com AME, ou atrofia muscular espinhal, nem saíam do hospital. Iam para o respirador e, em geral, morriam até o primeiro ou, no máximo, segundo ano. Pessoas com AME têm uma variante patogênica, ou mutação, no gene SMN1, responsável pela produção da proteína de sobrevivência do neurônio motor (SMN). Temos um backup do gene SMN1, o SMN2, que não funciona bem, mas produz uma quantidade pequena – 10 % do necessário – de SMN.
Há vários tipos de AME. O mais grave e mais comum é o Tipo 1.
Quanto mais cópias de SMN2 a criança tiver, melhor. Em geral, crianças que morrem por AME não têm qualquer cópia de SMN2. Crianças com AME Tipo 1 costumam ter duas cópias de SMN2. Outras com AME Tipo 2 podem ter três ou quatro cópias de SMN2.
Como o tratamento foi desenvolvido?
O medicamento [Zolgensma] foi testado primeiro em laboratório, depois em animais e finalmente em estudos com humanos. Ele passou por todas as fases para aprovação pelas agências regulatórias. Nos Estados Unidos, foi aprovado pelo FDA em 2019. No Brasil, pela Anvisa em 2020.
As duas terapias existentes têm mecanismo de ação diferente. O Zolgensma [da Novartis] oferece através de um vetor, o vírus AAV-9, o material genético normal do gene SMN1. “Corrige” o SMN1 e é administrado por via endovenosa uma única vez.
Já o Spinraza [fabricado pela Biogen] “corrige” o gene SMN2 e faz com que ele trabalhe melhor produzindo mais proteína SMN. Após as doses de ataque, deve ser administrado por punção liquórica a cada quatro meses por toda a vida da pessoa.
Como é a estrutura com a qual você trabalha?
Sou médica do corpo clínico e, com o apoio da superintendência da instituição, formamos uma equipe com vários profissionais da saúde – médicos, enfermeiros e farmacêuticos – que receberam treinamento para realizar terapia genética.
O tratamento não é só medicamentoso. A equipe que trata esses pacientes inclui pneumologista e é muito importante a fisioterapia tanto motora quanto respiratória.
Mesmo antes de termos a terapia gênica, já conseguíamos manter as crianças vivas e sem muitas complicações com esses tratamentos. Me dedico profissionalmente às pessoas com doenças raras e suas famílias. Realizo aconselhamento genético para todas as idades e meu foco é identificar a causa da doença e buscar alternativas de tratamento. Mesmo que não existam alternativas curativas, podemos instituir terapias de apoio que melhoram muito a qualidade de vida das pessoas.
Você se dedicou a quais linhas de pesquisa na carreira?
Meu trabalho de doutorado foi sobre hiperplasia adrenal congênita, uma doença que foi incluída na triagem neonatal graças aos resultados da nossa pesquisa. Nesta doença, uma menina pode nascer com um pênis e não ter testículos na bolsa. Registram como menino, mas é uma menina. A adrenal dessas crianças produz muita testosterona e isso faz com que os grandes lábios da menina se fusionem e fechem, e cresce o clitóris. Não é só a alteração da genitália que pode acontecer. As crianças podem ter perda salina importante e morrer com um mês de desidratação na ausência de diagnóstico.
Tenho parcerias com muitas universidades fora do Brasil e uma das linhas de pesquisa é Síndrome da Acheiropodia [ou aquiropodia], uma doença que só acontece em brasileiros com ascendência portuguesa. As crianças nascem com pernas só até os joelhos e braços só até o cotovelo.
O doutor Ademar Freire Maia estudou essa síndrome em São Paulo. Conversei com ele e a gente escreveu sobre o caso em 1998 numa revista chamada Clinical Genetics. A partir disso, vários pesquisadores começaram a me procurar. Agora, em conjunto com o Dr. Nadav Ahituv, da Universidade da Califórnia, estamos com um artigo no prelo na revista Nature para 2021. Outra parceria importante é com o Dr. Michio Hirano, que aceitou três pacientes meus com deficiência de TK2 para tratamento na Universidade de Columbia, em Nova York. Graças a este tratamento, uma das crianças estabilizou a doença e suas duas irmãs estão assintomáticas.
E hoje, trabalha com alguma pesquisa?
Sempre que realizo um diagnóstico, tento inserir os pacientes em grupos brasileiros, mas a maioria dos grupos são internacionais. Por exemplo, faço parte da Von Hippel-Lindau Alliance, que faz fundos de pesquisa para incentivar a busca de tratamento. A Von Hippel-Lindau é uma síndrome de predisposição hereditária ao câncer. Atendo a uma família em que o primeiro paciente foi um rapaz de 26 anos que estava perdendo a visão. Ele tem a Von Hippel-Lindau. A partir do diagnóstico dele, vi que o pai tinha tido câncer de cerebelo aos 40 anos.
A irmã, que se consultava num posto de saúde, tinha diagnóstico de labirintite. Testei toda a família e vi que a irmã, que tinha 24 anos, também estava com tumor no cerebelo igual ao pai.
Do rapaz que estava perdendo a visão, retiramos um tumor da [glândula] adrenal. A mutação dele está em todas as células e pode dar tumores em vários locais. Por causa desse paciente, me associei à Von Hippel-Lindau Alliance. Também tenho pacientes com autismo por variantes genéticas raras associadas ao transtorno que estão incluídos em pesquisa em Harvard.
Quais são os novos tratamentos ou drogas que já estão disponíveis em sua especialidade que mais parecem promissores?
O tratamento que mais gostaria de trazer para o Brasil seria o para Síndrome de Rett, uma doença genética evolutiva que afeta principalmente meninas. Além disso, gostaria de ter um tratamento para parar o desenvolvimento de neurofibromas e um para Von Hippel-Lindau que suprima o surgimento de novos tumores.
Nos últimos congressos, me chamou a atenção a presença de representantes das famílias com doenças raras. Elas já têm um espaço para discutir sobre seu tratamento.
Especialmente no exterior, elas se unem em alianças ou sociedades para formar recursos de pesquisa para suas doenças. Inclusive, essas entidades associativas patrocinam pesquisas importantes para o descobrimento de novas terapias. É muito bom envolver o paciente nas decisões.
Onde acha que a genética vai estar em cinco ou dez anos?
Todo médico, independentemente da especialidade, deve estar a par dos avanços da genética. Hoje já temos painéis de genes para avaliar a predisposição ao câncer e às doenças cardiovasculares. Já podemos fazer um painel genético para casais que desejam saber se têm riscos de filhos com doenças autossômicas recessivas graves.
Que notícia em relação à sua especialidade você gostaria de ler?
O desenvolvimento da telegenética, que um dia sonhei pudesse ser possível.
Criei o site Telegenética pelo qual médicos que não tiveram a oportunidade de ter formação em genética pudessem ter uma consultoria para poder diagnosticar e tratar seus pacientes.
Hoje já há sites assim nos Estados Unidos. Mas, na época, foi pioneiro no mundo. Tentei por três anos, mas infelizmente não tive apoio e foi por água abaixo. Parou de funcionar faz uns oito anos. Por falta de organização do sistema público, até hoje não removeram do ar [a página segue abrigada no site da Procempa, companhia de processamento de dados da prefeitura de Porto Alegre].
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