Apenas três em cada 10 cientistas do mundo são do sexo feminino. Os dados, da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), mostram ainda que do total de estudantes matriculados em cursos de Ciência, Tecnologia, Engenharias e Matemática, somente 35% são mulheres.
Estudos realizados entre cientistas nesses campos de conhecimento registraram que elas recebem menos por suas pesquisas e não progridem em suas carreiras na mesma velocidade do que seus colegas homens.
Apesar disso, há motivos para termos esperança. Um deles é o maior reconhecimento por parte da sociedade da importância delas no avanço da ciência.
O Prêmio Mulheres Brasileiras na Química e Ciências Relacionadas, oferecido pela Sociedade Americana de Química (ACS, na sigla em inglês) em parceria com a Sociedade Brasileira de Química (SBQ), é um deles.
A quarta edição dele premiou Núbia Boechat, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); Rafaela Salgado Ferreira, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e Marília Oliveira Fonseca Goulard, da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Future Health conversou com Núbia Boechat, vencedora na categoria Líder na Indústria.
Este prêmio reconhece a profissional que trabalha na indústria química cujas pesquisas e inovações criativas levaram a descobertas que contribuíram para o sucesso comercial e para o bem da comunidade e da sociedade.
Núbia é vice-diretora de Educação, Pesquisa e Inovação da Fiocruz, onde coordena projetos estratégicos de novos medicamentos para o tratamento de doenças como leucemia e Aids.
Ela também está envolvida na criação do Centro Nacional de Referência para Síntese de Drogas da Fiocruz.
Núbia e suas colegas brigam há muito contra as estatísticas, que esbarram na representatividade feminina em STEM (sigla em inglês para ciência, tecnologia, engenharia e matemática).
No início deste ano, o Gender Summit, encontro virtual que discutiu a importância das mulheres na ciência, apontou que no Brasil as mulheres são maioria entre os alunos de graduação e doutorado.
Apesar disso, a sub-representação começa no nível da docência universitária e cresce à medida que os cargos de liderança aumentam e se tornam mais políticos.
A Pesquisa Comparativa sobre Mulheres e Meninas em STEM na América Latina indica que, nos cargos políticos mais elevados em Ciência e Tecnologia, a representação feminina não passa de 2% (!).
Núbia critica a forma como o Brasil conduz atualmente as empreitadas científicas, mas por outro lado, vê com bons olhos a nova geração de mulheres na batalha pela valorização feminina na ciência.
Confira os principais trechos da entrevista:
O que o Prêmio Mulheres Brasileiras na Química significa para a valorização da mulher na ciência e o que levou você a ser premiada?
É um prêmio que valoriza a mulher profissional na área e busca minimizar as diferenças de gênero. Acredito que tenha sido premiada seja por toda a minha trajetória e liderança do Farmanguinhos, o maior e mais importante laboratório farmacêutico público que hoje pertence ao Ministério da Saúde. Em 35 anos de Fiocruz, tenho coordenado importantes projetos institucionais e me dedico ao desenvolvimento de insumos farmacêuticos ativos, buscando melhorar os acessos aos medicamentos para pacientes do Sistema Único de Saúde, o SUS.
Quais foram as suas principais conquistas inovadoras?
Coordenei o projeto de desenvolvimento de fármacos para Aids que levou à produção dos primeiros antirretrovirais no país, diminuindo custo dos tratamentos, aumentando o acesso aos portadores de HIV e dando sustentação ao reconhecido Programa de Aids do Brasil. Em 2017, recebi uma placa por contribuir com a saúde pública, um reconhecimento à minha trajetória. Além de formar recursos humanos especializados e atuar em Aids, eu e meu time descobrimos centenas de novas moléculas para doenças negligenciadas como o câncer, descritas em 127 artigos e 47 patentes.
Qual o impacto das suas descobertas para a sociedade e comunidade científica em geral?
Os resultados sempre tiveram o objetivo de melhorar o acesso a medicamentos para a população brasileira, que utiliza o SUS. Foram inovações tecnológicas e de gestão.
Você acredita que prêmios como esses incentivam o governo brasileiro a investir mais em ciência?
No contexto geral, as decisões do atual governo têm desvalorizado a ciência e a tecnologia. Os investimentos e as verbas estão em queda, ano a ano. Infelizmente, não sei se essa premiação chamará a atenção dos governantes.
Hoje você se sente como um lugar de fala nesta profissão? As mulheres que sonham com a profissão sentem-se representadas, por meio de premiadas como você?
Acredito que sim. Sempre tive as minhas posições, comportamentos e atitudes muito marcantes. Muitas vezes escuto de alunas o quanto me admiram e se espelham em mim.
Você acha que há preconceito de gêneros em contratação de profissionais no Brasil e em outras partes do mundo?
O preconceito existe e está claro no Brasil e no mundo.
Qual a representatividade feminina na ciência?
Posso observar na área química, no Brasil, que as mulheres são maioria; porém, nem sempre são reconhecidas na hora de contratação em empresas privadas. Já no serviço público elas se destacam por meio da aprovação em concursos públicos.
Em quais países do mundo as mulheres cientistas estão mais valorizadas e por quê?
As mulheres têm dificuldades em todos os países, alguns mais e outros menos. Não pela sua competência técnica, científica ou gerencial. Elas são mães e a maternidade é um motivo para a sua discriminação. Além disso, por mais que lutemos contra o machismo secular, na maioria das famílias, elas ainda são o porto seguro e as donas de casa que assumem outra jornada de trabalho.
Quais conselhos você daria aos estudantes que sonham com uma carreira de cientistas e pesquisadores, em especial as mulheres?
Para se destacar em qualquer carreira, é preciso amar e acreditar no que se faz. A curiosidade científica para o aprofundamento do conhecimento é fundamental.
Conte sobre seu sonho em ser cientista. Quando você pensou nisso pela primeira vez? Quem a incentivou?
O meu pai foi o primeiro cientista que conheci. Um médico apaixonado pelas ciências que me deu acesso, desde pequena, a inúmeros livros sobre as ciências da vida, astronomia, egiptologia, história etc. Na faculdade de farmácia tive os meus primeiros contatos com pesquisa científica, por meio de vários professores, e foi na minha iniciação científica, no IPPN/UFRJ [Instituto de Pesquisa de Produtos Naturais da Universidade Federal do Rio de Janeiro], que eu despertei para a química enquanto ciência.
Em que a ciência ainda precisa inovar e evoluir?
A ciência nunca vai parar de evoluir, ou não é ciência.
Qual a sua maior frustação quando pensa em valorização da ciência no Brasil?
Não tenho uma frustração específica. A ciência no Brasil ainda tem muito a evoluir, mas é difícil pela falta de continuidade de financiamento dos projetos e por não ter concursos para renovação do quadro de pesquisadores.
Qual legado você gostaria de deixar para a nova geração de cientistas?
A ciência é um processo de construção contínua. Todas as grandes descobertas e inovações científicas são decorrentes de ideias e trabalhos anteriores. Eu espero que o meu legado sirva como ideias e inovações para as gerações futuras.
Qual o seu maior orgulho em todos esses anos de trabalho?
Ter sido corajosa para enfrentar os desafios que surgiram no meu caminho e ter transformado alguns em legados para o SUS.
O que você ainda quer realizar?
A ciência não se esgota. Por isso, ainda tenho muitas coisas para realizar na ciência e na gestão.