Na pandemia do coronavírus, toda e qualquer vacina será mais que desejada, não importa de onde venha. Mas um imunizante brasileiro contra a Covid-19 vem sendo desenvolvido com orientações e protocolos da Anvisa em cada etapa pela Farmacore, uma empresa de base tecnológica especializada em imunização sediada em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo.
A Versamune-CoV-2FC, ou apenas Versamune, pode entrar nas primeiras fases de ensaio clínico agora em fevereiro.
Apesar de ter no projeto a parceria da empresa americana PDS Biotech, que fornece o carreador (uma proteína que transporta substâncias) e também faz testes nos Estados Unidos, a Versamune é uma vacina brasileira.
Helena Faccioli, paulistana de 38 anos e CEO da Farmacore, explica a diferença entre essa associação e as do Instituto Butantan com a chinesa Sinovac e da Fiocruz com a britânica Universidade de Oxford e a empresa anglo-sueca AstraZeneca.
“O Butantan e a Fiocruz não participaram do desenvolvimento da vacina. Estão simplesmente internalizando tecnologia”, diz ela.
“A Farmacore participa ativamente do desenho da vacina, do desenvolvimento de cada protocolo e de cada teste, cada etapa.”
Ela continua: “No Butantan e na Fiocruz, até existem outros projetos que são desenvolvimentos novos de vacina, que estão na fase de prova de conceito ainda. Mas, nestes casos com a AstraZeneca e a Sinovac, é uma compra de tecnologia, uma licença para produzir no Brasil”, diz Helena, reforçando que a explicação é apenas para fazer a distinção, sem desmerecer as outras vacinas.
Formada em ciência da informação na USP-Ribeirão Preto e com MBA em administração, Helena já trabalha há 20 anos com gestão de projetos científicos. Isso a levou a participar da fundação da Farmacore em 2005.
Desde então, a empresa se especializou no desenvolvimento e produção de vacinas para humanos e também veterinárias e tem convênios e contratos com universidades públicas e privadas, agências públicas de pesquisa e parcerias com empresas privadas nacionais e internacionais. Logo no início da pandemia no ano passado, ficou claro que a empresa deveria se dedicar a um projeto contra a Covid-19.
“Temos uma plataforma em que conseguimos, mudando o antígeno [qualquer substância estranha ao organismo], adaptar para doenças diferentes”, conta a CEO.
“Então, quando surgiu a Covid, começamos a pensar que cabia colocar um antígeno de Covid e simular uma vacina com a plataforma de carreador feita pela PDS. Começamos a conversar com a Anvisa já nessa época, em abril. Gostaram da ideia e falaram: ‘Sigam estas instruções, essa vai ser nossa conduta para todos os projetos de Covid’. Então, desde o começo, tivemos uma interação muito grande com a Anvisa”, relata Helena.
A cada etapa de desenvolvimento e com o auxílio de uma consultoria especializada em interação com a Anvisa, a Farmacore fazia uma reunião para mostrar resultados, receber orientações e verificar se o trabalho estava de acordo com as diretrizes da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
Em novembro, após mostrar dados de testes em animais que indicavam que a vacina gera anticorpos contra o coronavírus, a empresa ouviu que já havia verificações e qualidade suficientes para apresentar o dossiê oficial à Anvisa e, com isso, poder passar para a execução do ensaio clínico, com aplicação de vacinas em voluntários nas fases 1, 2 e 3.
A agência apenas pediu dois testes adicionais, que a Farmacore estava concluindo em janeiro para poder entregar o pedido de acordo com as diretrizes.
“Por que isso é importante?”, pergunta Helena. E responde: “Só a nossa vacina tem a direção dada pela Anvisa para saber se está correndo da forma correta e está seguindo todos os padrões regulatórios nacionais e internacionais da Covid”.
“Outras vacinas vão chegar para submeter os dados à Anvisa e não vão estar conforme o manual para registro de produto. Assim, estamos seguindo um caminho correto sem desperdiçar tempo nem recursos.”
O CUSTO DE DESENVOLVER UMA VACINA
Sim, criar uma vacina é um processo demorado. E caro. A CEO da Farmacore não tem uma cifra para dar sobre o projeto de sua empresa porque ainda está longe da conclusão.
Mas indica que estudos americanos estimam que o custo de desenvolvimento de uma vacina contra Covid “vai de 80 a 100 milhões de dólares desde a primeira etapa, da primeira ideia, de desenhar a construção vacinal, de todos os testes até terminar o ensaio clínico de fase 3 e ser feito o registro de produto”.
Até agora, a Farmacore investiu recursos próprios e houve contribuição também da parceira PDS Biotech, que está fornecendo sem custo o princípio ativo R-DOTAP ou Versamune (de onde vem o nome da vacina).
Também houve uma captação através do CNPq, que fez no meio de 2020 uma chamada pública para financiamento de projetos para vacina contra Covid. Em parceria com a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, já que o projeto tinha de ser associado a um laboratório público, foi obtido um investimento de R$ 3,8 milhões. Só que esse recurso foi para a faculdade, que está gerenciando parte do estudo, e não entrou para a empresa.
“Agora estamos buscando com o governo um financiamento para o ensaio clínico. Porque aí começa a ficar caro. São pelo menos R$ 20 milhões para fazer a Fase 1”, conta Helena.
UMA VACINA EM QUATRO ETAPAS
Helena descreve como será cada etapa do ensaio clínico da Versamune, que será realizado com laboratórios parceiros que vão executar os testes.
“Na Fase 1/2 [ou fases 1 e 2 combinadas], como a gente chama, você seleciona em torno de 120 voluntários para testar se a vacina não tem efeito colateral. Reúne quatro grupos diferentes, coloca voluntários com placebo, determina uma dose alta e uma dose baixa, inocula e vê como essas pessoas reagem”, explica.
“E avalia se essa vacina vai gerar anticorpos em humanos, porque nos animais a gente já sabe que gera. Essa Fase 1/2 tem duração de 3 meses. Porque você não pode inocular em todas as pessoas ao mesmo tempo. Tem de fazer por grupo, por faixa etária, é escalonado”, diz a CEO.
Ela prossegue: “No final desses três meses a gente já pode abrir os resultados. Na aplicação, é tudo cego. A gente só pode ter acesso a essa informação quando encerrar. É para evitar qualquer tipo de direcionamento de resultados”.
Helena acrescenta que os laboratórios que executam os testes têm controle de quem recebeu placebo e quem recebeu a vacina. Mas o fabricante só acessa essas informações no final da fase.
Os centros que executam os testes também selecionam os voluntários, descartam alguns (os que têm comorbidades, por exemplo), e fazem avaliação física e exame de sangue.
E, depois da aplicação da vacina (ou do placebo), fazem o acompanhamento de reações e efeitos colaterais através de telefone ou WhatsApp. Se ocorreu algo assim, o voluntário é orientado a retornar ao local onde recebeu sua dose.
A seguir, vem a Fase 3, ainda com voluntários. “Você pode começar a ler os resultados dessa fase em seis meses. Como são uns 30 mil pacientes, a aplicação demora esse tempo. E a logística da aplicação é um pouco mais complicada porque tem de ser feita em lugares diferentes do país. Pode ver que as empresas que começaram em abril ou maio estão terminando a Fase 3 agora”, diz.
Normalmente, a avaliação dos resultados dessa Fase 3 viria a seguir e duraria de 12 a 18 meses até chegar à aprovação completa de uma vacina. Mas o momento atual é extraordinário, por isso é que as vacinas contra a Covid já foram liberadas para aplicação pelo mundo.
“Como há um estado de pandemia, a gente pode fazer o que a Anvisa e todas as agências do mundo estão aceitando: tendo toda a documentação e todos os testes comprovados, pode-se pedir o uso emergencial”, afirma Helena.
“Mas você ainda tem de continuar o ensaio da Fase 3. Tem de fazer até Fase 4, um monitoramento de aplicação de larga escala nas pessoas comuns [não voluntários].”
PRODUÇÃO COM PROTEÍNA É UM POUCO MAIS SIMPLES
Há uma diferença no desenvolvimento da vacina da Farmacore em relação, por exemplo, à CoronaVac, a vacina do Butantan/Sinovac feita com o vírus inativado.
A Versamune será produzida com uma proteína sintetizada do coronavírus, o que implica numa produção um pouco mais simples.
“A Sinovac usa o vírus inativado. Então você precisa de uma estrutura de biossegurança de nível alto. A maior parte dos equipamentos são para proteção: aquelas roupas que deixam as pessoas inteiramente protegidas, escafandro… Porque você tem o vírus vivo, que você cultiva e depois mata para usar na vacina”, ela explica.
Já na Farmacore “a gente não mexe com o vírus, o nível de biossegurança é superbaixo. O antígeno da nossa vacina é um pedacinho da proteína do vírus que é sintetizado. Não preciso do vírus.”
A CEO explica que, como a sequência do vírus é conhecida, pode-se construir cada pedacinho dele sinteticamente.
“É uma tecnologia simples. Para produzir, precisa de um biorreator, um fermentador. Você mistura o antígeno e o carreador e tem a vacina.”
Para a CEO da Farmacore, é espantosa a velocidade com que as vacinas contra a Covid já chegaram ao público. “Foi um processo super acelerado, que normalmente é de seis anos. Para a Covid, com um ano já se consegue aprovação de uso emergencial. Isso nunca aconteceu.”
Mas o conhecimento anterior com outras vacinas e doenças e todo o desenvolvimento tecnológico ajudaram bastante. “Você já conhece sua plataforma tecnológica, conhece as interações entre as moléculas, se vai funcionar bem com vírus inativado ou com proteína, qual vai ser o caminho no sistema imunológico, que células vai ativar, se aquela resposta é adequada para a doença…”, diz.
“Então aproveito todo o conhecimento, toda a plataforma, toda a experiência da equipe, para conseguir acionar mais rápido contra uma nova doença.”
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