Um antigo provérbio inglês diz que “uma hora de dor é tão longa quanto um dia de prazer”. Embora, como todos nós, não goste de senti-la, a anestesiologista Amelie Falconi se viu encantada pela dor, a ponto de dedicar sua vida a estudar seus complexos mecanismos – ou, mais precisamente, aos da dor crônica.
Quatro em cada dez brasileiros sofrem com esse tipo de dor que dura mais de três meses. De acordo com a Sociedade Brasileira para Estudo da Dor (SBED), o problema que atinge 37% das pessoas afeta, em sua maioria, mulheres acima dos 40 anos que vivem no Sul ou no Sudeste do país.
A realidade é tão agressiva que, hoje, o Sistema Único de Saúde possui centros especializados para alívio da dor, bem como as instituições particulares.
Durante sua residência em anestesia, Amelie se apaixonou pela possibilidade de cessar a dor de alguém, levar alívio para esse indivíduo – segundo ela, o objetivo que a conduz, todos os dias, para seu ofício.
Mas qual é a fisiologia da dor? Onde ela nasce e onde ela morre? Ela é igual para todos? É possível mensurá-la? Essas e outras questões que intrigaram a médica são respondidas por ela aqui.
Por que escolheu lidar com a dor?
Eu fiquei encantada do ponto de vista de anestesista, como, durante um procedimento cirúrgico, você consegue cortar uma pessoa e ela não sentir dor. Foi amor à primeira vista. E aí descobri que existia uma especialização em dor, e que um dos pré-requisitos para ter esse título é ser anestesista, que era minha residência. Ao longo dela, acompanhei sem querer pacientes com dor crônica, do primeiro ao terceiro ano. Então não pensei duas vezes.
Como foi a sua trajetória profissional?
Quando eu terminei meus três anos de residência em anestesia, dediquei mais dois aos estudos da dor. Fiz um ano de estudo da dor na Santa Casa de São Paulo e fui convidada pra um fellowship no Rio de Janeiro, onde fiz mais um ano de dedicação exclusiva em procedimentos intervencionistas para controle de dor crônica.
Na sequência, fiz um estágio no Texas, prestei a prova internacional em procedimentos de dor e passei.
E aí eu voltei foragida do Texas por causa da pandemia. Hoje, sou sócia de uma clínica de saúde que é multiprofissional onde o foco é ter diversas especialidades médicas e promover o estilo de vida saudável. Faço diversos procedimentos intervencionistas de dor e sou professora disso também no [Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert] Einstein. Além disso, faço procedimentos intervencionistas tanto no Brasil quanto lá fora.
Qual é a fisiologia da dor? Ela existe mesmo?
A Associação Internacional para Estudo da Dor define que a dor é uma experiência sensitiva emocional desagradável associada ou semelhante a uma lesão tecidual, real ou potencial. Por que isso é importante? Você vê que a dor é, sim, subjetiva.
Quem sabe se tem dor ou não é o paciente, e a única pessoa apta a descrever a intensidade é ele também.
Porque a dor não é matemática. E essa percepção de dor varia de pessoa para pessoa, justamente porque é uma experiência subjetiva. Você só consegue tratá-la de uma maneira correta a partir do relato de um paciente, porque é ele que definirá qual a sua intensidade.
De onde vem a dor?
É no cérebro onde vai ocorrer o processamento desses estímulos e a formação e a experiência de dor. Você bate o dedão na porta, mas é no cérebro que você sente dor. Nem por isso ela não existe – mesmo sendo difícil de “rastreá-la”, por isso o depoimento do paciente é tão importante. Você pode ter dor sem ter lesão ou quando seus exames estão normais.
Não existe essa relação entre alterações de exame de imagem e a presença ou ausência de dor.
Há uma queixa muito constante no consultório: quando o familiar fala que a dor da pessoa é psicológica. É natural, quando estamos doloridos de alguma forma, o nosso emocional ser afetado – e vice-versa. Mas em hipótese nenhuma pode-se dizer que a dor dessa pessoa seja de caráter só emocional. Isso invalida toda a experiência daquele paciente.
Isso vale para as dores crônicas?
A questão da dor crônica leva a diversas alterações, tanto na transmissão do impulso doloroso quanto na liberação de neurotransmissores. Analgésico comum não trata dor crônica, porque você tem que tratar todas essas alterações também no nível da arquitetura cerebral.
As medicações de primeira linha para tratar diversas dores crônicas são os antidepressivos e anticonvulsivantes.
Eles geralmente são para tratar outras doenças, mas também diversos tipos de dor, porque esses medicamentos funcionam alterando a forma com que os nervos tratam a dor e reduzem a sensibilização central – pacientes com dor crônica apresentam essa sensibilização do sistema nervoso central. Isso é importante explicar porque o paciente acha que, ao tomar o antidepressivo, a família fica pensando que ele não tinha dor, que ela era emocional ou que o médico não acreditou nele. Mas não é isso.
Quais são os possíveis diagnósticos e como eles são feitos?
Existem diversas síndromes dolorosas presentes na sociedade. Se você parar para pensar, a dor é a queixa mais comum tanto em consultórios quanto em pronto-socorro. Ela é o ponto de partida. A dor pode estar presente nas doenças mais prevalentes na nossa sociedade, como as cardiovasculares, as pulmonares etc. É um universo extremamente rico.
Esses diagnósticos são feitos a partir da entrevista com o paciente e os dados que encontramos no exame físico.
São as informações mais importantes, tanto para o diagnóstico quanto para definir a conduta. Os exames de imagem ou laboratoriais são complementares, servem para confirmarmos ou descartar hipóteses, mas o mais importante é a entrevista – a anamnese – e o exame físico.
A partir disso, podemos falar em tratamento definitivo? Ou somente contínuo?
Você falar em cura total da dor pode ser uma meta muito irreal, porque depende de muita coisa. Existem três situações em dor crônica, até pela questão das diversidades do que é tido como crônico.
Pense em um pódio como se ele trouxesse o ouro, a prata e o bronze em tratamento de dor.
O bronze representa aquele paciente que, após procedimentos e medicações, nós conseguimos diminuir muito as dores dele – e, apesar de ainda ter dor, não é mais atrapalhado em suas atividades diárias por ela. A nossa prata é o paciente que ficou sem dor, mas precisa dos remédios. E o paciente ouro é o que ficou sem dor e sem uso de medicamentos. O objetivo maior é trabalhar a expectativa e a realidade com os pacientes e diminuir ao máximo essa dor pra que ela não limite ele de viver sua vida.
A partir da sua experiência, há alguma curiosidade possível de ser dividida?
Não sei como era sua experiência antes, mas, quando você vai no médico de dor, o que você acha que a maioria das pessoas esperam? Que eu vá prescrever um remédio. Quando eu começo a fazer minha entrevista médica, que parece quase uma investigação do FBI, eu destrincho tudo para depois começar as orientações.
E os pacientes ficam surpresos em saber que há toda uma questão de estilo de vida que é responsável por causar dor crônica, não é só prescrever medicação.
Eu vou passar um remédio, mas também orientações para que haja essa mudança no estilo de vida, para reduzirmos aquilo que está causando a dor. Se você só passar a medicação sem trabalhar os hábitos, você estará enxugando gelo.
E quais seriam essas mudanças?
Tem uma questão que falo para todos os pacientes, do particular e do SUS também, que é: esteja atento à sua alimentação, atividade física, sono e estresse. Isso não ajuda só na dor, mas na prevenção da maioria das doenças. É um arroz com feijão que, se for bem feito, você previne, trata, tem menos custo com medicação, com médico.
Se você pensar, a nossa população está envelhecendo cada vez mais, mas não quer dizer que está envelhecendo bem.
Isso porque aumentaram muito os índices de câncer e doenças cardiovasculares. Ter uma dieta balanceada e atividade física melhora até mesmo o seu sistema imunológico, que foi tão importante e atuante agora durante a Covid. A gente tem que se habituar a essas situações, por necessidade mesmo, como tantas outras que temos na vida.