Médica oftalmologista, “casada com médico, irmã de médico, filha de médicos, neta de médico e futura mãe de uma médica”, Ana Elisa Siqueira descobriu, desde que se formou, que a medicina falhava em seu modelo de gestão e em seus processos.
Em uma empresa que fazia atenção domiciliar, ela percebeu que, se era possível cuidar de pacientes no pós-hospitalar, por que não cuidar dele antes e evitar a própria doença?
“Percebi que olhar para o sistema como um todo e, de certa forma, até mesmo repensá-lo, seria muito mais contributivo para a sociedade do que eu, como oftalmologista, continuar ajudando as pessoas a enxergar melhor”, afirma.
Mestre em Economia e Gestão em Saúde pela Universidade Federal de São Paulo, com MBA em Gestão Estratégica pelo Instituto Insper, Ana Elisa fundou com o pai a GSC Integradora de Saúde.
Ela nasceu da união da Hospitalar Santa Celina, empresa de home care, com a Semeando Saúde, de promoção de saúde e prevenção de doenças.
“O objetivo sempre foi integrar as duas e criar uma organização na qual a coordenação de cuidado pré e pós-hospitalar fosse alinhada aos cuidados intra-hospitalares, e a gestão de saúde se sobrepusesse ao cuidado com a doença.”
No ano passado, a GSC foi comprada pela Dasa, que viu sinergia na proposta da empresa com o objetivo de ser uma enorme rede de saúde integrada.
“Houve um alinhamento entre o que a GSC praticava e a tese da Dasa em relação ao presente e futuro da saúde”, conta Ana Elisa.
Hoje diretora-geral de Cuidados Integrados e Inovação Assistencial na Dasa, Ana Elisa conta que continua sua luta por uma medicina preventiva e preditiva, apoiada em tecnologia de dados.
Nesta entrevista, a especialista em Implantação de Modelos de Gestão de Qualidade pelo Canadian Accreditation Health System, com formação em Governança Corporativa pela Fundação Dom Cabra, conta sobre sua trajetória, sobre ser uma mulher empreendedora em meio a tantos homens e sobre essa prática que ela acredita ser o futuro da saúde.
Quero começar conceituando: o que são cuidados integrados e por que estamos ouvindo falar tanto disso ultimamente?
Cuidado integrado ou coordenação de cuidado é realizar o cuidado certo para a pessoa certa na hora certa. É acompanharmos a jornada do nosso usuário, com a utilização de ferramentas e dados dentro do sistema de saúde, integrando, quando necessário, os três níveis de atenção: primário, secundário e terciário. Ele surge para combater um modelo fragmentado, de alto custo e que não gera valor, focado no episódio agudo da doença e que não promove saúde. Hoje, quando uma pessoa tem algum problema de saúde, é comum que sua porta de entrada no sistema seja o pronto-atendimento.
Se esse usuário estivesse conectado a um médico que o conhecesse, sua experiência seria melhor, tendo uma condução mais assertiva e gerando melhor desfecho.
E como faço isso? Com o apoio de health analytics, aproveitamos os dados de utilização e dados assistenciais para identificar e estratificar nossas populações. Com isso, mesmo em grandes grupos, temos o foco no indivíduo. Criamos a jornada do usuário com apoio de linhas de cuidado que atendem as pessoas dentro das suas condições de saúde. Por exemplo, se temos um grupo de usuários jovens e saudáveis, usamos protocolos para identificar “gaps” de cuidado e prevenir possíveis doenças. Se temos grupo de pacientes com patologias específicas ou múltiplas comorbidades, utilizamos protocolos específicos e a multicanalidade para acessá-los e acompanhá-los na sua jornada de cuidado, mitigando a agudização de suas condições clínicas.
Qual é o cenário atual dos cuidados integrados e da inteligência assistencial, para usar seu cargo na Dasa como referência, no país? Quais são os principais desafios e onde estão as oportunidades?
A tecnologia abriu uma nova fronteira para a coordenação de cuidado. Graças à ciência de dados e à inteligência artificial, é possível fazer uma avaliação completa e integral da saúde de uma pessoa, resultando em uma medicina mais preditiva, preventiva e personalizada. É esse o caminho e a proposta de valor da Dasa. Hoje, somos uma healthtech, tamanha a inovação tecnológica imbuída em nossos processos.
Conforme essa tecnologia avança, temos a oportunidade de, inclusive, antecipar a ocorrência de doenças antes mesmo de a pessoa sentir os primeiros sintomas.
Quando alinhamos nossa capacidade de analisar dados, competência assistencial, transformação digital, inovação da experiência dos médicos e pacientes e nossa capilaridade, geramos a possibilidade de inovar e criar valor para o indivíduo e para a sociedade, facilitando acesso e reduzindo desperdício. Nosso propósito é ser a saúde que as pessoas desejam e o mundo precisa.
Você é médica oftalmologista. Como foi sua mudança de rumo para a gestão?
Eu sou médica, casada com médico, irmã de médico, filha de médicos, neta de médico e futura mãe de uma médica. A medicina sempre fez parte da minha vida e, desde que me formei percebi quanto a medicina falhava em seu modelo de gestão e em seus processos. Faltava a capacidade de o médico alinhar sua vocação assistencial com o resultado do seu negócio, entregando o melhor valor para o paciente.
Quem nunca ouviu a máxima “medicina não tem preço, mas tem custo”?
Com o tempo esse modelo foi me incomodando, porque não conseguia entregar resultados sustentáveis e se criou um sistema de soma zero, onde todos os stakeholders se sentiam insatisfeitos. Minha iniciação na área de gestão foi aprimorando processos em uma empresa que fazia atenção domiciliar. Aprendi a fazer coordenação com pacientes que saíam do hospital e eram cuidados multidisciplinarmente em suas casas.
Pensei: se podíamos coordenar cuidado no pós-hospitalar, por que não criar um modelo de coordenação de cuidado que evitasse a doença e promovesse a saúde?
Percebi que olhar para o sistema como um todo e, de certa forma, até mesmo repensá-lo, seria muito mais contributivo para a sociedade do que eu, como oftalmologista, continuar ajudando as pessoas a enxergar melhor. Meu propósito foi desenvolver um sistema que reorganizasse a lógica assistencial, reconectasse o médico ao paciente e, dentro dos princípios do acesso, integralidade, longitudinalidade e coordenação, trouxesse de volta as melhores práticas assistenciais e incentivasse os melhores desfechos, criando a sustentabilidade necessária para manter a saúde suplementar viva.
Me conta sobre a GSC? Como foi empreender, como essa oportunidade surgiu e quais foram as ineficiências que você queria resolver com seu negócio?
A GSC nasceu da união de duas empresas, uma de home care, a Hospitalar Santa Celina, e outra de promoção de saúde e prevenção de doenças, a Semeando Saúde. O objetivo sempre foi integrar as duas e criar uma organização na qual a coordenação de cuidado pré e pós-hospitalar fosse alinhada aos cuidados intra-hospitalares, e a gestão de saúde se sobrepusesse ao cuidado com a doença. A GSC é resultado de uma parceria com o meu pai, que está no mercado de saúde há mais de 40 anos. O que nós nos perguntávamos era: como criar um modelo que fosse bom para todos e, ao mesmo tempo, sustentável?
O que você acha que é o grande diferencial da GSC?
Um dos grandes legados da GSC foi contribuir para que o mercado enderece um modelo que, há dez anos, todo mundo achava que era impossível de existir. Um modelo baseado em gestão da saúde, medicina preventiva, preditiva, linhas de cuidado, rede de atenção integrada, em olhar longitudinal da jornada das pessoas e qualidade assistencial. Mesmo a GSC não existindo mais como marca, pois em 2021 fomos totalmente integrados à Dasa, essa visão impactou radicalmente o mercado de saúde, em um movimento que foi bastante acelerado nos últimos anos.
De todos os aprendizados que a GSC trouxe para você, quais são os mais úteis agora como executiva da Dasa?
Como gestora, existem pontos aos quais preciso estar atenta o tempo todo, como planejamento, estratégia, liderança, pessoas e inovação. Nesse sentido, um dos grandes aprendizados é a importância das pessoas. É fundamental ter uma equipe qualificada do ponto de vista técnico e, mais importante, manter essa equipe engajada e estimulada na nossa missão.
Uma empresa de serviços médicos sem um capital humano relevante não é ninguém.
Na Dasa, esse é um desafio porque estamos falando de uma gigante com mais de 40 mil colaboradores. Estamos em uma jornada para começar engajando nossos times internos nessa tese enquanto ela mostra os resultados e se consolida no mercado. Mas o maior aprendizado é que mais importante do que você fazer algo é você entender por que você faz e desenvolve algo. Propósito, quando existe, é capaz de quebrar paradigmas e criar um novo olhar, mudando o status quo dos sistemas, mesmo os mais complexos
Por que a Dasa quis comprar a GSC no ano passado e por que você viu sentido nesse negócio?
Houve um alinhamento entre o que a GSC praticava e a tese da Dasa em relação ao presente e futuro da saúde. As duas empresas, ainda que atuando separadamente, caminhavam em direção convergente: usar a tecnologia a favor de uma medicina mais humanizada, preventiva, preditiva, inclusiva e acessível, eliminando o caráter altamente inflacionário do sistema. Era como duas empresas com o mesmo propósito e complementares, apesar da diferença de tamanho, e que na fusão puderam potencializar energias e sinergias, de maneira a impactar mais profundamente a forma como a população cuida da saúde. Essa nova reestruturação nos permitiu cuidar de dois pontos: a fragmentação da assistência e a falta de foco em prevenção de doenças e promoção de saúde.
Como a GSC atua hoje, debaixo do guarda-chuva da Dasa? Qual o papel dela na rede de saúde integrada?
A GSC se tornou a unidade de negócios de Cuidados Integrados e Inovação Assistencial [CIIA] da Dasa, atuando em parceria com diversas áreas. Nosso foco hoje é cuidar dos novos produtos que têm no seu core a coordenação de cuidado. Ampliamos nosso leque de atuação e hoje, dentro de modelos assistenciais, apoiamos o desenho das linhas de cuidado e toda a jornada do nosso usuário, nos três níveis de atenção, em parceria com ambulatórios e hospitais. Temos a diretoria de Health Analytics que apoia toda nossa tese, criando a medicina preventiva e preditiva, e uma área que atua junto ao nosso corpo clínico, apoiando novos modelos e a nova cultura.
Hoje, fazemos a coordenação de mais de 200 mil vidas e estamos, aos poucos, expandindo a atuação da área de CIIA para todas as 20 milhões de vidas que passam anualmente pelos laboratórios, clínicas e hospitais da Dasa.
Se a proposta de valor da Dasa é criar um ecossistema que possibilite ao usuário ser olhado de maneira integral, gerando uma medicina preditiva, preventiva e personalizada e reduzindo custos ao longo da cadeia, isso só pode ser atingido com essa coordenação. Não adianta termos centenas de laboratórios e dezenas de hospitais se o atendimento continuar fragmentado.
Estamos trabalhando para que, se a pessoa realizar um exame no Delboni, por exemplo, ela não tenha que repetir esse mesmo exame daqui alguns meses no Hospital Nove de Julho.
E é aí que entra a grande sinergia gerada com a fusão com a Dasa, porque agora toda essa lógica de coordenação de cuidado é alimentada e apoiada por uma grande estrutura, com a capacidade de interoperar dados que permite uma tomada de decisão mais inteligente, assertiva e rápida, promovendo melhores desfechos clínicos.
De que forma, na prática, uma empresa gigante como a Dasa pode fazer o sistema de saúde olhar de fato para a saúde das pessoas, e não apenas tratar da doença?
Obviamente que esse desafio não depende apenas da Dasa. No entanto, pelo nosso tamanho, credibilidade e qualidade dos profissionais, temos conseguido mover o ponteiro para essa direção. Queremos criar lógicas de incentivos financeiros onde os players sejam valorizados também pelo desfecho, criando um modelo de geração de valor, proporcionando efetividade e resultado assistencial. Esse é um caminho sem volta, que aos poucos vem sendo trilhado.
Os usuários do sistema também devem ser envolvidos nesta transformação, pois a cultura do cuidado é sempre melhor do que a cultura de se tratar um evento agudo.
O simples fato de a Dasa seguir esse caminho já provoca uma movimentação no setor de saúde. As pessoas se perguntam: por que a maior rede de saúde integrada do país está fazendo isso? Será que eu devo fazer também? Para reforçar essa crença, a Dasa tem feito uma série de aquisições nos últimos anos, criando um ecossistema que a permita cuidar da saúde das pessoas sob todos os ângulos e em todas as frentes.
Como essa inteligência assistencial pode contribuir para a redução de gastos? E de quanto estamos falando, é possível quantificar?
A redução de gastos vem pela gestão de saúde, coordenação de cuidado, um aspecto fundamental da medicina: ouvir as pessoas e saber como elas estão, o que, no nosso caso, é feito por uma equipe multidisciplinar e diferentes canais. Cada vez mais somos uma rede phygital, que cria novas experiências para nossos usuários. A inteligência de dados e a tecnologia nos ajudam a saber quando entrar em contato e por onde fazer isso, qual abordagem que devemos ter e como devemos prosseguir.
Quando assumimos uma carteira e passamos a coordenar o cuidado, começamos a ver os primeiros resultados após seis meses de acompanhamento, com resultados mais expressivos após o nono mês de trabalho.
Em linhas gerais, reduzimos a frequência de utilização do pronto-socorro em aproximadamente 40%, reduzindo as internações em cerca de 18% e reduzindo também a permanência hospitalar. Nosso índice de reintegração dessas carteiras é quase dois dígitos abaixo dos números de carteiras sem coordenação e temos uma redução significativa na realização de exames simples, de aproximadamente 25%.
Estamos falando em uma economia de milhões de reais por carteira.
Você pode até se perguntar: mas a Dasa não tem hospitais e laboratórios e, portanto, lucraria com esses pacientes realizando mais exames e cirurgias? Em tese, sim. Mas sabemos que esse modelo não é sustentável, não é esse o nosso propósito. Evitar exames e procedimentos desnecessários precisa ser a lógica da assistência. Não dá para não agirmos frente a tamanho desperdício. A sustentabilidade nos direciona.
O que é o Centro de Medicina Integrada da Dasa e como estão os planos de sua inauguração?
Um dos grandes projetos que complementam a atuação da Dasa como ecossistema é o Centro de Medicina Integrada, em Alphaville, na Grande São Paulo. Previsto para o último trimestre deste ano, oferecerá pronto-atendimento adulto e infantil, hospital day care, centro de infusão, serviço de hemodiálise e salas cirúrgicas para procedimentos de baixa complexidade em um prédio de três andares. O centro contará também com a operação do Alta Medicina Diagnóstica, integrada ao complexo, para análises clínicas, vacinas, ressonância, tomografia, raio X, espaço da mulher – com colposcopia, vulvo, mamografia, ultrassonografia geral e fetal – e cardiologia, com eco, teste, eletro, mapa e holter. A expectativa é realizar 45 mil atendimentos mensais e oferecer a melhor experiência de saúde integrada para as pessoas. Investimos cerca de R$ 100 milhões no projeto.
Você traz em sua bagagem a luta pelo protagonismo e pela liderança feminina. Que percalços enfrentou em sua trajetória de empreendedora por ser mulher?
A minha paixão e determinação por transformar a saúde e trazer um novo olhar para a prática do cuidado foram as fortalezas que me ajudaram a empreender no setor de saúde em uma sociedade na qual as oportunidades entre homens e mulheres ainda, infelizmente, são desiguais. Nesses anos todos, o melhor aprendizado foi o de sempre sentar à mesa de igual para igual, seja com quem fosse. Esse é um conselho que dou para as minhas filhas e para outras mulheres, pois quando você é mulher, tem muito mais bolinhas para equilibrar – a divisão de tarefas nunca foi igual na sociedade. Isso acaba impactando a forma como a gente se enxerga no mercado de trabalho.
Um caso curioso: na época de planejamento estratégico, quando discutíamos valores na GSC, sempre colocava um valor que chamo de “a disciplina fanática da execução”.
E todo ano os diretores voltavam para mim, perguntando: “Mas precisa ser fanática? Se é disciplina da execução, já é fanática”. Minha resposta é a mesma: precisa. Se a gente não tiver uma disciplina fanática para executar, a gente deixa de cumprir as etapas necessárias para colocar toda a nossa estratégia em prática. Estratégia sem execução vira poesia. Quando você tem propósito alinhado à disciplina, sua capacidade de transformação é enorme. Se isso estiver alinhado com a sincronicidade que rege o universo, tenha certeza de que você será capaz de inovar e transformar. “Seja a mudança que você quer ver no mundo”, disse Mahatma Ghandi.
Por outro lado, qual é o ganho que uma liderança feminina pode trazer para um negócio – e, mais especificamente, para um negócio de saúde?
Sempre me posicionei como agente de mudança, onde quer que estivesse inserida. E busco trazer esse sentimento para a minha equipe, provocando-os sempre a usarem suas competências para apoiar a transformação. Como empreendedora, médica, líder e mulher, procuro estimular que outras mulheres tenham a capacidade de serem independentes e construírem seu caminho, buscando seus sonhos e contribuindo com a transformação das áreas em que atuam. Enquanto as mulheres tiverem o desejo de mudança – e eu acredito que elas têm –, a sociedade continuará sendo mais viva e dinâmica, o que vai se refletir também nas empresas.
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