À primeira vista, escolher a área de oncologia pediátrica pode parecer um peso para a alma. Imaginar uma criança doente, sem cabelos ou sobrancelhas é duro, para se dizer o mínimo.
A paraense Cecilia Maria Lima da Costa, de 54 anos, vê na especialidade, em que atua há 26, lições de vida e de resiliência para cada paciente que trata. E, sem constrangimento, se permite sentir as perdas, quando elas acontecem.
Cecília é líder da Oncologia Pediátrica dos hospitais A.C. Camargo Cancer Center e Hospital Infantil Sabará, que desde março do ano passado firmaram uma parceria que prevê jornada completa de cuidados para a criança com câncer, reunindo o que as duas instituições têm de melhor.
Os protocolos mais modernos de tratamento de câncer, seja infantil ou adulto, trazem equipes multidisciplinares. Assim, usar a expertise de oncologia do AC Camargo e o melhor conhecimento de pediatria e suas subespecialidades, juntando esforços para atender de forma mais ampla e efetiva possível a criança, é louvável.
Felizmente, o câncer infantojuvenil, como se chama aquele que acomete recém-nascidos a jovens de 19 anos, é raro: representa 2% de todos os casos. A estimativa do Instituto Nacional de Câncer (INCA) para o biênio 2020-2022 é que haja 8.460 novos casos por ano em nosso país.
Por outro lado, por possuir características próprias e bem diferentes em relação ao câncer em adultos, o câncer infantil – quando diagnosticado precocemente – tem chances de cura de 80%.
Na conversa que Cecilia Maria Lima da Costa teve com Future Health, ela falou de diferenças de filosofias e abordagens entre a oncologia clínica e a oncologia pediátrica, os tratamentos mais modernos e do seu conceito pessoal de vitória – que não inclui necessariamente a cura de seus pacientes, mas, sim, amenizar o sofrimento e dar a eles e seus familiares a sua melhor energia.
Como era o seu ambiente familiar lá em Belém do Pará, em termos de profissões? Desde quando você teve certeza de que seria médica?
Acho que desde sempre. Talvez minha mãe tenha influenciado um pouco. Ela ia a uma ginecologista que tinha três irmãos, e os quatro eram médicos. E minha mãe sempre falava que achava isso bonito, ela sonhava que os quatro filhos dela fossem também. [No fim, somente uma das irmãs de Cecília formou-se na área da saúde, em Terapia Ocupacional.] Então, sempre que eu pensava em alguma profissão, era medicina.
Na escola, eu fiz um teste vocacional e veio também a área da saúde. E eu sempre tive, desde a adolescência, afinidade com crianças.
Inicialmente, pensava em fazer pediatria, mas durante a faculdade encontrei várias pessoas com quem eu me identificava e admirava que eram da Ginecologia. Passei a acompanhar e me apaixonei pela Obstetrícia. Quando via um bebê nascendo, me emocionava muito. Decidi que era aquilo que eu queria, tanto que nem fiz estágio de pediatria durante a graduação. Só que com o tempo, percebi que alguns obstetras eram um pouco rudes, principalmente nos hospitais públicos. Aquilo me chocou um pouco… A forma com que tratavam as mães no parto normal.
E aí, quando fui fazer o meu trabalho de conclusão de curso, fui atrás de um orientador de ginecologia e não achei. Encontrei um orientador de neonatologia, pensei que tinha a ver e decidi fazer.
O cara era um pediatra muito dedicado, que as mães adoravam. Fiz meu estágio na Santa Casa de Misericórdia de Belém e, quando tinha uma criança em estado grave, ele ficava a noite toda do lado do recém-nascido. E a gente [os orientandos] ficava junto. Fui me apaixonando por aquilo e voltou a minha vontade inicial de fazer residência em pediatria.
Você diria que os e as pediatras tem o perfil um pouco mais paciente que os demais especialista? Ou é só impressão de quem está de fora?
Não, eu acho que o pediatra é mais acolhedor. Não sei se é ser mais paciente, mas é dar uma atenção especial. Como pediatra, eu trabalho em parceria com os pais, dependo muito deles, porque o olhar deles é muito sensível e fiel ao que a criança tem. Às vezes, fico 30 minutos, uma hora com a criança. Isso é muito pouco perto das informações valiosas que a mãe ou o pai, que estão o tempo todo com a criança pequena, trazem para mim. Então, acho que precisa mesmo dar essa atenção. E os pediatras, de uma forma geral, têm esse perfil de saber ouvir um pouco mais.
No caso da especialização em oncologia, fala-se muito no estigma da doença. Tem gente que não consegue nem falar a palavra câncer. O que a levou a trabalhar com essa área que tem tantas peculiaridades?
Sempre gostei de desafios e a oncologia é desafiadora. Mas o que fez eu me apaixonar, inicialmente, foram as crianças. Quando entrei na residência de pediatria, a gente tinha que se dividir pelas áreas, mas ninguém queria a oncologia. E eu caí lá. De cara, percebi que as crianças eram muito, muito especiais.
Eu via nas crianças resignação e resiliência – ao mesmo tempo que elas tinham uma doença grave, eram felizes, passavam para gente muito amor. Elas gostavam da gente por estarmos tratando delas e eram muito mais carinhosas.
Acho que toda criança já é muito especial, mas a criança que tem uma doença como o câncer fica muito próxima do médico. É até muito difícil descrever para você, porque é uma sensação. Elas conquistam a gente com uma força de vida, com alegria. Não é como as pessoas imaginam: “A criança tem câncer chora o tempo todo porque está sofrendo”. Não! Ela brinca, consegue ser criança mesmo na adversidade. Olhando para trás, acho que foi isso que me conquistou – a força e a vontade de viver que as crianças têm, que nos dão lições de vida.
Eu sempre melhoro muito como ser humano, até mais do que como médica, a cada contato com cada criança e cada família.
Não é fácil a gente estar junto com alguém que está sofrendo. A gente exercita muito a empatia, a compaixão e acaba sentindo aquela dor também. Não tem como não se envolver. É uma doença crônica. Tem pacientes que eu atendi pequenininho e, hoje, já são adultos. Então, a gente fica muito junto com eles. É difícil, mas a gente sempre tem vitórias. Sempre! Mesmo quando o paciente não consegue a cura, muitas vezes, vejo que ele venceu e que eu venci junto com ele. Isso é recompensador. Muitas vezes eu choro, muitas vezes fico triste. Mas se colocar na balança o lado difícil e o lado recompensador, o lado bom é infinitamente maior.
Que tipo de cuidados com a sua própria saúde mental e emocional você tem para enfrentar o desgaste resultante desse desafio de presenciar o sofrimento?
Escolhi não me blindar, eu quero sentir. Às vezes, sinto a dor do luto porque perdi alguém que eu amava. Não é só um paciente que atendi uma ou duas vezes: eu fiquei junto por anos. E me permito ter esse sofrimento, mas também quero me reestruturar novamente, porque virão outros. Então, além de encarar que cumpri a minha missão com aquela criança, com aquela família, tenho de trabalhar o vazio que fica às vezes. “Será que podia ter feito mais alguma coisa?”
Acho que isso tem muito a ver com o autocuidado, a gente desligar um pouco, ter férias.
Eu lembro que quando estava começando na medicina, meus professores falavam: “Tenho 20 anos de profissão e nunca tive férias.” Hoje, vejo o quanto isso é danoso. A gente precisa se refazer. O que me ajuda muito é ter um tempo longe do hospital, ir para praia, ter contato com a natureza, com animais e com a minha família também. Tudo isso me ajuda a voltar para os meus pacientes com a energia que eu acho que eles merecem.
Você está no AC Camargo desde a especialização em oncologia, em 1996. A partir de 2006, você passou a liderar a Oncologia Pediátrica. Passou também a se dedicar mais à pesquisa?
Não, eu sou puramente assistencial [risos], adoro o contato com o paciente. Sempre digo que a pesquisa é uma consequência. Sou clínica, só que a experiência no tratamento dos pacientes faz com que a gente divida essa experiência com os outros através das publicações. Tenho muitas parcerias com o CIPE, o Centro Internacional de Pesquisa e Ensino do A.C.Camargo. Pensando na assistência, eu preciso responder algumas perguntas: “Como posso melhorar a sobrevida?”,“Como posso melhorar o tratamento?”. A gente trabalha em conjunto para darmos essas respostas. E isso se faz através da pesquisa.
Entendo que sua paixão é atender pacientes, estar ali a serviço deles. Porém a liderança deve ter lhe exigido entrar na parte de gestão também. O que isso agregou?
Eu consigo fazer a melhor assistência possível porque a gente se dedica muito para ter uma gestão de qualidade – as coisas se completam. É como se fosse um quebra-cabeça com as pecinhas se encaixando. E ainda tem a parte de ensino, que eu também gosto muito, que me fascina.
A gente tem residentes tanto no AC Camargo quanto no Sabará. Agora, estamos em uma fase de unir as duas residências, trocar essa experiência de pediatria geral que tem no Sabará, com a residência de Oncologia Pediátrica do AC Camargo e ter um programa que contemple as duas áreas.
A gente trabalhar em conjunto para isso. Digamos que seja um quadripé: ensino, pesquisa, assistência e gestão. Mas dá para perceber que a minha paixão é a assistência, estar junto com a criança é o desafio ali do dia a dia. E é poder ter em mim essa energia que eles trazem. Isso me acrescenta muito.
Quando e por que começou a aparceira AC Camargo e Sabará que engloba assistência, ações nas áreas de ensino e pesquisa? Tem a ver com complementariedade de conhecimentos?
Faz um ano que começamos a parceria. A ideia é que médicos especialistas e pacientes transitem entre as duas instituições para diagnóstico e tratamento. O câncer infantojuvenil é uma doença muito rara, representa cerca 2% entre todos os casos de câncer. O AC Camargo é um hospital oncológico geral. Como pediatra, aproveito ao máximo toda estrutura, tecnologia e expertise oncológica dali.
Não tem nada que eu queira de oncologia que eu não encontre dentro do AC Camargo – unidade de transplante de medula óssea e cirurgia, tecnologias para diagnóstico por imagem (Pet-CT), anatomia patológica e tratamento através de aceleradores lineares.
Além das peculiaridades do câncer infantojuvenil, há outras coisas específicas, alguns focos da pediatria que o Sabará tem como: expertise no diagnóstico e tratamento de doenças simples até as mais raras e de difícil interpretação diagnóstica.
O Sabará é um hospital só de crianças, pediátrico. Então, ali tudo é pensado para pediatria e isso nos complementa.
No Sabará, a gente atende também os pacientes oncológicos, mas lá não tem radioterapia, por exemplo. O AC Camargo não tem algumas especialidades pediátricas como a cardiologia pediátrica. Então, o paciente que entra pelo AC Camargo vai ter acesso mais facilmente a essas especialidades pediátricas. E o paciente oncológico que entra pelo Sabará vai ter acesso à radioterapia, biologia molecular, quimioterapia ambulatorial, que a gente tem muito bem estruturadas no AC Camargo. Tanto a gestão do Sabará, quanto a gestão do AC Camargo perceberam que são hospitais que se completam porque não compensa o hospital ter um especialista ou uma estrutura de radioterapia para um número muito pequeno de pacientes.
A parceria entre os hospitais vai deixar ainda mais evidente que o tratamento de câncer é melhor endereçado com equipe multidisciplinar de especialistas, como oncologistas, pediatras, cirurgiões, radioterapeutas, entre vários outros). É comum no caso de adultos, após a remissão, continuar o trabalho com os grupos de sobreviventes que cuidam da parte social e de saúde mental dos pacientes. No caso de crianças e adolescentes há a mesma abordagem?
Esta é outra parte da oncologia pediátrica que é a minha paixão – os sobreviventes. O AC Camargo foi o primeiro a fazer avaliação especializada para detecção e controle dos efeitos tardios [feito pelo Grupo de Estudos Pediátricos dos Efeitos Tardios do Tratamento Oncológico, o GEPETTO, desde 1999]. Esses programas de survivorship começaram na oncologia pediátrica porque desde o final dos anos 1990 a chance de cura é maior, em torno de 70% a 80%, enquanto na oncologia clínica, só começou a ter um boom de melhoria da sobrevida a partir dos anos 2000.
Se a maior parte dos pacientes de oncologia pediátrica sobrevivem, ficam curados, eles vão ter um tempo de vida, depois do câncer, muito longo. E como eles estão física, emocional e socialmente?
Com o estudo do sobrevivente, a gente passou a encarar que a cura não é só física, que não adianta nada eu curar o tumor se aquela pessoa está doente emocionalmente ou não consegue se colocar no mercado de trabalho. Depois que o paciente termina o tratamento, a gente continua acompanhando. Nos primeiros anos, esse acompanhamento visa mais ver se a doença não volta, se não tem recaída. Depois de cinco anos, a chance de recaída é muito pequena, mas os efeitos de quimioterapia, radioterapia ou de alguma cirurgia podem ocorrer depois de anos.
No GEPETTO, a gente tem pacientes que já foram curados há 10, 20, 30 anos e pode identificar, precocemente, se ele vai ter algum problema relacionado ao tratamento. Seja problema físico, emocional, social.
Os nossos estudos também mostram que existe um risco maior de uso de drogas por esses pacientes. Alguns pacientes têm comprometimento da fertilidade, então precisam de orientações. Outros pacientes têm uma história familiar de câncer, então, a gente atua com a oncogenética também, para fazer uma avaliação e, se for necessário, realizar algum teste genético para saber se os filhos podem ter risco de ter câncer. Temos um banco de dados muito grande, com mais de 2 mil casos de pacientes curados porque o AC Camargo atua desde 1964 na oncologia pediátrica. O Sabará também avaliava os pacientes após o tratamento, mas a nossa ideia, agora, é fazer esse programa em conjunto.
De forma geral, o câncer infantojuvenil evolui rápido, porque as células que sofrem a mutação no material genético não conseguem amadurecer como deveriam e permanecem com as características semelhantes à da célula embrionária, multiplicando-se de forma acelerada e desordenada. Em que difere o início do tratamento de uma criança ou adolescente em relação a um adulto, uma vez que os cânceres que atingem as crianças não atingem os adultos e vice-versa?
Sim, são totalmente diferentes. Eu não sei tratar um câncer de mama, porque criança não tem carcinoma de mama! Assim como um oncologista clínico dificilmente vai saber tratar um neuroblastoma [atinge células nervosas do sistema nervoso simpático; é mais comum nas glândulas adrenais,no abdome ou próximo da coluna espinhal, nos chamados gânglios dorsais], doença que ocorre em crianças de 2 a 3 anos. Mesmo os cânceres pediátricos têm protocolos de tratamento diferentes.
O câncer da criança, de uma forma geral, é muito agressivo, cresce muito rápido. O do adulto é mais indolente, então, o oncologista de adulto já tem uma filosofia de tratamento em que é possível esperar.
Nós, oncologistas pediátricos, somos conhecidos dentro do hospital como desesperados, como os loucos que fazem biópsia em um dia e no outro já estamos cobrando o patologista se ele tem algum resultado. Isso porque, por ser muito agressivo, quanto antes a gente tratar, melhores são as chances de cura. Por outro lado, a quimioterapia, que é o tratamento mais antigo para o câncer, e a radioterapia também agem muito bem nesse tipo de câncer, em que a célula se multiplica muito rápido, porque atuam na fase de multiplicação celular.
Quanto mais agressivo, mais as células se multiplicam e maior será o efeito do tratamento quimioterápico nas células. Com quimioterapia, a gente consegue curar em torno de 70% a 80% dos nossos pacientes.
Existem tumores, como o Tumor de Wilms, que acontece no rim, em que a chance de cura em Estágio I [restrito a uma parte do corpo, sem comprometimento linfático] e Estágio II [localmente avançando com comprometimento do sistema linfático; ou espalhado por mais de um tecido] é mais que 95%. Como chegamos nisso? A gente usa quimioterápicos antigos, mas que aprendemos, com o tempo, qual é a melhor combinação de drogas e qual é a dose que vai dar o melhor efeito, com menos toxicidade. Foi isso que fez a chance de cura aumentar tanto.
Antes da década de 1970, eram os oncologistas e cirurgiões de adultos que tratavam crianças e era muito raro elas ficarem curada [o índice era de 20%]. Aí começou o tratamento especializado, os pediatras começaram a se organizar e colaborar entre si.
O câncer mais comum em crianças é a leucemia. A gente tem, no máximo, 20 casos por ano. Então, é preciso juntar as instituições para fazer estudos e mudanças de tratamento que melhorem o prognóstico. É o que a gente chama de grupos cooperativos, em que os especialistas fazem pesquisam em conjunto, estudos multicêntricos e internacionais, inclusive. Quanto mais rara a doença, mais a gente precisa da união de todos para entender como ela progride, qual o melhor tratamento, como a gente pode fazer mudanças.
Foi através dos grupos cooperativos ao longo do tempo, que a gente foi melhorando essa chance de cura, até chegar no que temos hoje, que é muito boa. Ainda tem alguns cânceres que são desafiadores, mas de uma forma geral, a maior parte das crianças tem uma chance alta de ficar curada.
A filosofia do tratamento oncológico em pediatria é uma e a de adulto, outra. São especialidades que nem se complementam. A gente nem trabalhava juntos. Atualmente, nos aproximamos porque a gente está com uma preocupação muito forte com o adulto jovem com câncer, porque o câncer não é tão parecido nem com o da criança pequena e nem com o do adulto idoso. O adulto jovem está meio perdido entre essas duas especialidades e talvez para tratá-lo a gente precise se unir. É uma coisa muito recente. No AC Camargo estamos nos organizando para ter um tratamento especializado para adolescente e adulto jovem.
Os cânceres infantojuvenis mais comuns são leucemias, tumores do sistema nervoso central, linfomas (no sistema linfático), tumores sólidos como o neuroblastoma (nas glândulas adrenais), sarcomas (partes moles do corpo), tumor de Wilms (no rim) e tumores ósseos. Em relação às inovações nos tratamentos, o que se pode esperar: da imunoterapia (auxilia o próprio sistema imunológico do paciente a identificar e combater o câncer), da medicina de precisão com terapia-alvo (como um “míssil teleguiado” que bloqueia as proteínas específicas da célula que está doente) e terapia gênica?
Diferentemente da oncologia clínica, a imunoterapia ainda está começando na oncologia pediátrica [as primeiras drogas imunoterápicas foram liberadas no mercado em 2011]. A gente está em uma fase inicial ainda no mundo inteiro, adquirindo experiências. Já temos algumas indicações precisas de imunoterapia: utilizamos em alguns casos de leucemia e melanoma, mas ainda não é o carro-chefe do tratamento, como, por exemplo, a gente vê em algumas situações de câncer de mama, câncer de pulmão, para os quais isso já é uma realidade em adulto.
Em crianças, o tratamento de primeira linha é a quimioterapia, com a qual temos essa alta chance de cura.
Para a criança poder ficar mais tempo em casa, tem tipos de medicações quimioterápicas em que a gente pode ter um dispositivo – como se fosse uma bomba de infusão programada para liberar quimioterapia de acordo com a dose que a criança vai tomar – e a criança vai com aquela medicação para casa. O problema da quimioterapia não é garantir que o paciente fique curado, é a toxicidade. A quimioterapia faz o tratamento ser muito sofrido. A criança tem muitos efeitos colaterais dolorosos.
A ideia de ter uma outra modalidade de tratamento é manter, ou até melhorar a chance de cura, com menos efeitos colaterais do que a quimioterapia. Achamos que a imunoterapia é, assim como para os adultos, uma saída para isso.
As terapias-alvo são pensadas em uma situação em que a quimioterapia falhou. Hoje, a gente já pede o painel molecular do câncer das crianças [pode detectar mutações genéticas específicas, hereditárias e relacionadas à doença], o que ajuda muito a entender melhor a doença, saber se existe, mesmo que não seja direcionada para aquela doença ou para criança, uma terapia-alvo que a gente possa tentar. Infelizmente, para o serviço público isso ainda não é uma realidade. Alguns convênios estão pagando. Outros precisam de liminar.
A terapia-alvo permite individualizar e tratar melhor a doença ao combater o câncer com base na composição genética, certo? Em que ponto estamos nisso?
Estamos começando a fazer isso. A gente tem adquirido muita experiência, por ter banco molecular [arquivo de dados de perfil molecular de pacientes e tumores]. Isso ajuda a gente a entender melhor a doença, para depois ter um tratamento alvo com menos toxicidade. Em oncologia pediátrica, isso ainda não é uma realidade nem nos EUA.
Recentemente, foi aprovado pela Anvisa o primeiro registro sanitário no Brasil para um produto de terapia gênica com CAR-T Cell, uma das grandes novidades no tratamento para cânceres hematológicos.
[Trata-se do Kymriah® (tisagenlecleucel) da empresa Novartis, que se baseia na extração das células T “soldados do sistema imunológico” do sangue do paciente, que são modificadas geneticamente para reconhecer o câncer, e depois reinjetadas no corpo do paciente para destruir o tumor]. O tratamento com a modificação celular é feito para aquele paciente específico. Vejo qual é o perfil molecular daquela doença e, geneticamente, crio anticorpos que vão combate-la. Nos EUA, CAR-T Cell já é uma realidade para alguns tipos de leucemia [aprovada pelo FDA desde 2017]. A gente ainda não tinha no Brasil e queria muito ter porque vai abrir portas para outros tipos de câncer.
Os estudos americanos mostraram excelentes resultados em crianças com leucemia linfoide. Mostram ainda que, no futuro, a gente poderá ter terapias celulares customizadas para cada tipo de tumor, de cada pessoa.
Por exemplo, não será um CAR-T Cell só para todas as leucemias. Será para aquela criança que tem um tumor com aquela característica. O problema é que é uma tecnologia muito cara. Com a Anvisa liberando, é possível a gente já ter junto aos planos de saúde. Mas por ser realmente muito caro, ainda não é utilizado nem nos EUA como a primeira modalidade de tratamento, só nos casos de doença refratária. Em leucemia, especificamente, a gente tem uma alta chance de cura: entre 80% e 90%.
São coisas mais modernas que estão crescendo na oncologia pediátrica e eu acho que o futuro não é distante. O futuro está ali, do nosso lado. E eu espero ainda ver isso antes de me aposentar.
Ultimamente, a gente está focando em [achar] um tratamento que pode ser tão eficaz quanto a quimioterapia – talvez, em alguns tumores, não se consiga uma chance de cura maior do que tem hoje –, mas menos tóxico e doloroso, pensando em qualidade de vida. Pensando em curarmos alguém que vai ser capaz de levar a sua vida sem nenhuma sequela. Essa é a linha de pesquisa atual.
E a cirurgia robótica aplicada à pediatria? Ela é só para alguns tipos de tumores?
Ela é muito mais precisa, não vai abrir a barriga inteira da criança, e vai levar a menos complicações no pós-operatório. O cirurgião controla o robô que faz uma cirurgia que minimamente invasiva. Na época em que eu comecei na oncologia, nem se sonhava nisso. Hoje em dia, é uma realidade.
Mas depende do tipo de tumor e do tamanho. Em tumores muito grandes não tem como fazer por cirurgia robótica.
Às vezes, o paciente chega com o tumor muito grande, mas responde tão bem à quimioterapia que o tumor fica pequeno e então é possível fazer uma cirurgia minimamente invasiva, como a robótica. Estudamos cada caso em reuniões multidisciplinares com radiologia, cirurgia, patologia para gente decidir se aquele é o melhor caso para ir para cirurgia robótica. A gente faz nos tumores de órgãos como, por exemplo: tumor em fígado, bexiga, até nos rins a gente já fez, e também em partes moles como alguns tipos de sarcomas. O A.C.Camargo é a única instituição do país a operar jovens pacientes com a cirurgia robótica.
Falei da assistência e da pesquisa, mas faltou uma paixão, os cuidados paliativos. E é bom explicar que não é só para o paciente que não tem chance de cura ou para o paciente que já está em fase de morte
Qualquer paciente que tenha uma doença grave, com risco de vida, pode se beneficiar dos cuidados paliativos. Mas para esse grupo de pacientes que não tem mais chance de cura e para os que já estão em fase terminal da doença a atuação dos cuidados paliativos fica ainda mais forte. É um olhar humanizado para o paciente, para que esteja o mais confortável possível nesse processo, e para a família dele também, para que seja o menos traumático possível. Essa é a visão que o paliativista tem e que é fundamental.
Depois de mais de 25 anos na oncologia pediátrica, fiz uma pós-graduação em cuidados paliativos. Antes, a gente ia muito nas tentativas, nos acertos e erros.
É uma área da medicina que cresceu muito, primeiro em adultos e, agora, estamos crescendo também em pediatria. E tem muito a ver com o que a gente falou hoje, sobre qualidade de vida, controle de sintomas e um olhar holístico para o paciente. Quando atendo uma criança que tem câncer, não vou tratar o câncer. Vou tratar aquela criança e a sua família. Então é um olhar muito mais amplo. Pensar, do ponto de vista dos cuidados paliativos, em relação a dar todo o apoio psicológico, espiritual e social, faz toda diferença.
Acho que o cuidado paliativo é tão importante quanto a quimioterapia.
É o que eu falei antes: não venço só quando o paciente fica curado. Quando a gente percebe que fez o melhor e conseguiu amenizar o sofrimento, é também uma vitória para a gente. Não é só curando que a gente está fazendo o nosso melhor. Isso eu não sabia antes da oncologia. Ela me ensinou.