Que a pandemia deixou quase todo mundo mais estressado, tenso e ansioso não é novidade. Mas os números começaram a chegar para corroborar essa sensação.
No ano passado, a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) divulgou uma pesquisa que apontava que 34% dos fumantes brasileiros aumentaram a quantidade de cigarros consumidos.
Foi um baque para um país que, dois anos antes, era apontado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) como um exemplo de combate ao tabagismo.
O consumo de cigarros tem crescido entre jovens, não só do Brasil mas também em outros países.
Modismos como cigarro eletrônico, os chamados “vapes”, e narguilé respondem por parte disso – ainda que a Anvisa proíba a comercialização, a importação e a propaganda de quaisquer dispositivos eletrônicos para fumar.
Além deles, o tabaco também está presente no charuto, cachimbo, cigarro de palha, cigarrilha, bidi, narguilé, rapé e fumo-de-rolo, entre outros.
A substância mata 8 milhões de pessoas por ano. No Brasil, são 161 mil mortes anuais, uma média de uma pessoa a cada três minutos. De acordo com dados da OMS, cerca de 2 bilhões de pessoas são vítimas de fumo passivo no mundo. No Brasil, 40% desses afetados são crianças.
O tabagismo é considerado a maior causa evitável de morte e adoecimento no mundo, contribuindo para o desenvolvimento de mais de 50 doenças diferentes e mais de uma dúzia de tipos de câncer.
Tem mais: ele está associado a enfermidades como tuberculose, úlcera gastrointestinal, impotência sexual, infertilidade (em homens e mulheres), osteoporose, degeneração macular e catarata.
E quem convive com pessoas que fumam tem um risco aumentado de 24% de infarto e 30% de câncer de pulmão.
Podemos questionar a efetividade de campanhas anticigarro, mas não a quantidade de informação disponível. Por que então o tabagismo segue sendo um problema?
Conversamos com Humberto Bogossian, pneumologista do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, para entender por que ainda tanta gente sucumbe ao cigarro e quais são os segredos para abandonar o vício.
Por que é tão difícil parar de fumar? Não é falta de informação, os fumantes sabem dos prejuízos, não?
É um problema enorme. A primeira coisa, quando se tem um paciente tabagista, é não abandoná-lo. Você tem que acolher mesmo que ele não queira parar de fumar. Então eu sempre pergunto se o paciente está pronto para parar de fumar e se ele quer parar de fumar.
O tabagismo envolve um hábito social, que no passado era cultivado no meio da família, no ambiente do trabalho, no âmbito social.
No passado tinha isso: a pessoa era induzida desde muito cedo, famílias incentivavam as crianças. Não existia a cultura do “isso vai te fazer mal no futuro”. Depois surgiram as informações de que isso causa doenças pulmonares, cardiológicas, aí se criou uma cultura de não-tabagismo. Além disso, há o ato de fumar. Assim como a bebida alcoólica e outras drogas, ele dá uma sensação de prazer e relaxamento. Isso alivia o estresse, vira um gancho. Só que tem um custo. De saúde, financeiro, de fazer mal a uma pessoa pela inalação da fumaça.
É difícil largar. Porque, além da abstinência química da nicotina, tem o relaxamento que algumas pessoas associam com a ingestão de café ou de bebida alcoólica, pós-alimentação.
Envolve um ato, e mudar toda essa rotina é muito difícil. Envolve grupos, o casal, os amigos, você tem que mudar o ambiente e a rotina. Então você está na consulta e eu tenho que abordar: “Me diz, como é sua rotina, mais alguém fuma?”. A esposa, o marido. “E a pessoa está disposta a parar de fumar?” Não. É uma guerra na cabeça dele. Tem que se submeter a uma abstinência tendo outra pessoa fumando do lado. Por isso que temos que sempre acolher primeiro, tentar entender o lado social da doença. Por isso sua pergunta é boa: apesar de todo mundo saber que não é bom, muita gente ainda fuma porque tem seus prazeres.
Por que o tabagismo é considerado uma doença pediátrica?
Pela formação do hábito, tem a ver com a prevenção.
No Brasil o consumo de cigarro não é alto se comparado ao de outros países. Mas os jovens brasileiros estão fumando mais do que há uma década. A que se deve isso?
Adolescente tem isso de conviver em grupo, né? É um modo de estar presente. Tem também as famílias em que os pais fumam, assim como o cigarro eletrônico, que aumentou muito o consumo, não só no Brasil. Nos Estados Unidos, em colégios e universidades, quando surgiu, a ideia era pensar em uma opção de tratamento para tabagismo, mas no final isso foi desvirtuado.
A gente até chegou a ver o cigarro eletrônico com bons olhos, era uma alternativa para a terapia de reposição de nicotina. Hoje tem muito jovem usando porque não cria fumaça e “é permitido” em alguns lugares públicos.
Mas é um consumo ilegal [a venda é proibida no Brasil]. Ele vai ter menos partículas tóxicas e cancerígenas do que o cigarro porque é à base d’água. Mas, a longo prazo, começamos a ver que ele também induz doenças pulmonares, porque um dos problemas é que você pode adicionar nicotina, o quanto quiser, depende da mistura.
Já vi pacientes que compraram fórmulas com rótulo escrito à mão. Você não sabe o que tem lá dentro. Há o risco de inalar alguma substância tóxica.
Um problema enorme, que não é regulamentado pela Anvisa, é proibido. Teve casos de trabalhos, fora do país, com relatos de pacientes indo para UTI com doenças pulmonares agudas, com casos de óbitos por causa dos conservantes do óleo que vai no material. Não foi um: foram grupos de pacientes. Nos EUA, o pessoal começou a usar para começar a fumar, por ser autorizado a usar em lugar público. “Não vou usar para parar de fumar, vou usar para começar”. Então não se usa mais como tratamento de abandono do tabagismo.
Saindo dessa estratégia frustrada do cigarro eletrônico, que tecnologias existem hoje e que, de fato, são efetivas para quem quer parar de fumar? O que há de mais moderno e inovador para abandonar o tabagismo?
É a terapia multicomportamental. Tem que gastar tempo com o paciente, ter paciência. Saber se ele tem problema clínico, psiquiátrico, se está na hora de parar de fumar. Porque tem paciente que às vezes a gente percebe que não é a hora.
Tem que conhecer toda a estrutura familiar, a rotina, o grau de dependência de nicotina, se ele acorda e já precisa fumar, se fuma na cama, se fuma durante a refeição, quantas vezes para uma atividade para fumar.
Estava outro fim de semana em um jantar e a pessoa na minha frente saiu umas quatro ou cinco vezes para fumar. Não é que foi na hora da sobremesa, foi no meio da refeição. É alta dependência. É preciso saber isso do ponto de vista comportamental de estratégia. Temos que primeiro estimular a mudança de hábitos. Então falamos: “Tem estas opções de remédios, tem goma de mascar, tem adesivo de reposição de nicotina”.
Como o adesivo funciona?
A nicotina liberada pelo cigarro cai na circulação do sangue, vai para um receptor no cérebro e dá uma sensação enorme de bem-estar. A gente repõe essa substância para tentar inibir e não causar a síndrome de abstinência. Mas isso só vamos fazer na hora em que ele parar de fumar. Então a gente estabelece um “deadline”, sete, dez dias, para parar.
Isso de ir tirando aos poucos é muito difícil, qualquer desviada você escapa, tem que ter um autocontrole enorme. Por isso estabelecemos um dia para parar de fumar e damos as opções de medicamento.
São dois principais: um antidepressivo, a bupropiona [usado comumente para casos de compulsão], e a vareniclina, que vai inibir esse receptor ao qual a nicotina se liga. O que acontece: quando você for fumar, não vai sentir prazer porque o receptor está chocho. Não tem mais aquela sensação, aquela vontade de fumar que tinha antes. Por isso que tem que ter essa abordagem ampla do paciente, para saber se ele tem doença psiquiátrica, se está indicado ou não para usar a bupropiona.
E isso é usado por quanto tempo?
Pelo menos quatro meses com bupropiona. Vamos ajustando de acordo com paciente. Além do remédio, tem as mudanças comportamentais, a gente sempre incentiva atividade esportiva, mudança de hábitos alimentares. Tem paciente que desvirtua a alimentação para comer doces, ter outros prazeres. Então a gente incentiva a ter frutas e bebidas geladas à disposição. Isso acaba distraindo o cérebro na hora em que quiser fumar.
Parece bobagem, mas você consegue “enganar” o cérebro na hora que tiver vontade de fumar.
O apoio de psicólogos especializados em tabagismo, se o paciente aceitar, é bom. Hoje, com o recurso da telemedicina, para quem tem disponibilidade, o acesso ficou muito mais fácil. Em uma sessão de 30 minutos você consegue incentivar o paciente a tentar ver o ponto de fragilidade, se tem algo em casa que possa atrapalhar, não pode ter cinzeiro, isqueiro, nada que lembre cigarro. Já tive paciente que trocou de carro, de sofá, por causa do cheiro.
Você tem que estar a fim, isso faz toda a diferença. Não adianta a família trazer amarrado.
E a falha na tentativa pode acontecer. A taxa de sucesso fica em torno de 65 a 70%. Tem que tentar, se falhar, tenta de novo – é que nem dieta, uma hora engata. Outros trabalhos que mostram benefícios são a acupuntura, hipnose e meditação. Acredito em uma abordagem geral, temos que abrir o caminho, tudo que pode ajudar e não causa malefício é válido. Se a pessoa for paciente psiquiátrica, tentamos só repor a nicotina e partir para o esporte, fazer meditação com acupuntura, hipnose. Vamos buscar alternativas. A abordagem ampla é que é importante, não pode focar só no médico. A pessoa vai mudar de vida.
Durante a pandemia, assim como o consumo de álcool, o consumo de tabaco também aumentou. Você acha possível estabelecer uma relação entre saúde mental e tabagismo?
Com certeza. O impacto social da pandemia foi muito grande. Primeiro do ponto de vista econômico, educacional, principalmente crianças de baixa renda: o quanto elas perderam? Muitas estão paradas em casa, sem ter o que fazer, chega alguém e oferece cigarro, é dessa maneira que se começa.
Eu vi o impacto diretamente, ia fazer telemedicina e via pacientes que eram esportistas mudando de hábito e achando meio normal.
Ia fazer check-up em pessoas que tinham tudo controladinho e os exames vinham totalmente bagunçados. Mesmo eu, que tinha hábitos de academia todo dia: foi ela fechar, mudar de horário, quando reabriu, e eu ainda não consegui voltar, meus hábitos não estão saudáveis. Eu ingeri mais bebida alcoólica… Meus pacientes confessaram, estavam parados em casa, fumando muito mais, porque no trabalho não podia, agora fumam a hora que querem, na frente do computador.
Foi possível ver uma diferença entre pacientes com Covid fumantes e não fumantes?
Quando você fuma tem mais chances de pegar infecções. No quadro geral, o ato de fumar te deixa exposto a mais infecções respiratórias, então a chance de ter Covid é maior, porque a proteção de via aérea é menor. Os que têm lesão pulmonar causada pelo cigarro – bronquite crônica, enfisema ou um tipo de fibrose pulmonar – podem ter limitações funcionais que levam à piora da oxigenação.
Se eles pegarem uma Covid mais grave, podem sofrer mais.
O quadro de Covid é mais de pneumonia, é raro dar crise de bronquite, então ela não vai causar bronquite no paciente que fuma, que é o que a gente via antes com outros vírus. Ela vai dar uma pneumonia e vai baixar muito a oxigenação. Se a pessoa já tem um pulmão comprometido, essa oxigenação vai cair ainda mais, o paciente vai sofrer muito mais, e a recuperação vai ser mais trabalhosa, vai demorar mais para sair do oxigênio.
Como você se decidiu pela pneumologia?
Difícil falar que não fui induzido pelo meu pai [Humberto é filho do também pneumologista do Einstein, Miguel Bogossian]. Meu pai sempre falou para eu não ser médico nem pneumologista, mas convivi sempre com isso. Não sei o quanto influenciou, mas, um dia, resgatando coisas que minha mãe me mostrou, tinha uns experimentos que eu fazia, no sexto ou sétimo ano, que estavam sempre relacionados ao trato respiratório. Eu nem lembrava disso, para falar a verdade.
Sempre gostei da mecânica de trato respiratório, de como o pulmão insuflava, coisas relacionadas com a mecânica mesmo.
Mas não sei o quanto fui influenciado por ele. Sempre tentei fugir da carreira, decidi no terceiro ano, porque ficava com medo de estar sendo induzido, então tentei ir para exatas. Mas no fim vi que era o que gostava e fiz medicina. Na faculdade também tentei fugir, fui para cardiologia, pensei em ser cirurgião, mas fui atraído: na área pulmonar a gente tem uma visão geral, tem que saber um pouco de tudo na dinâmica da vida da pessoa.
O que você mais gosta na sua profissão?
Saber que fiz algo que mudou a qualidade de vida do paciente, que trouxe algum bem-estar, mesmo para o paciente terminal. Quando um colega médico me indica para tratar algum familiar dele é o maior reconhecimento que posso ter.
Tem algum caso marcante de paciente que queira compartilhar?
Tinha uma moça com uma doença grave pulmonar, a fibrose cística. Ela conseguiu chegar aos 40 anos, como todas as limitações. Ficou comigo quase dez anos, eu insisti muito para ela fazer transplante de pulmão. Estava chegando ao limite, com dois filhos, casada. Topou fazer bem na época em que minha esposa teve um linfoma diagnosticado. No dia em que ela fez o transplante, minha esposa faleceu. Logo que acordou, a primeira coisa que ela fez foi perguntar por mim, ainda intubada. Escreveu em um papel: “E o Humberto, como está?”. Agora ela está com médicos para acompanhar o transplante, então só nos vemos como amigos.
Você já fumou?
Meu pai sim. Eu nunca, tenho muita tosse. Uma vez fui padrinho de um casamento, o pai da noiva insistiu em fumar um charuto comigo. E ele ainda é meu paciente! Passei tão mal com aquilo que fiquei traumatizado. Eu não sei fumar, mas não sou daqueles chatos que criticam, tenho amigos fumantes. Morro de medo, já tive um problema sério no pulmão.
Que notícia ideal, sobre sua especialidade, você gostaria de ler amanhã?
Um tratamento eficaz contra o tabagismo para toda a população. Sinceramente, acho a proibição muito difícil. Mas seria interessante uma medida pública contra o tabagismo, de acesso à população. Propaganda na televisão, abordagem em escolas, acesso a tratamento em rede pública, incentivo ao tratamento, isso seria bacana. Porque envolve muitas doenças, o custo para a sociedade sairia barato com a quantidade de câncer e de doença vascular que isso preveniria. É mais fácil do que acordar e o cigarro estar proibido. Como teve a Lei Seca, a gente sabe que isso volta. Ia começar a ter tráfico de cigarro…
Você destaca algum país que tenha uma política pública interessante nesse sentido?
A Suécia. Querem proibir o cigarro eletrônico em lugar público e tornar o país livre de cigarro até 2025.