No dia 25 de novembro, o país assistia, chorando, a uma tragédia. Uma colisão entre uma carreta e um ônibus com trabalhadores deixou 42 pessoas mortas em Taguaí, no interior de São Paulo. Nesse mesmo dia, o cirurgião do trauma Gustavo Fraga conversava com Future Health. Para explicar exatamente o que faz, ele falou sobre o acidente.
“Se você tem um problema ginecológico, por exemplo, vai procurar um ginecologista”, disse Gustavo. “Se suspeita de um problema de estômago, procura um gastroenterologista. Para doença do coração vai atrás de um cardiologista”, continuou.
“O cirurgião do trauma você não procura. Muitas vezes você vai estar em uma situação crítica e não vai ter essa possibilidade. Como no acidente em Taguaí, o Samu faz o resgate e leva correndo para o hospital público – e você não tem muita opção de escolher em que mãos vai cair. É uma situação de urgência, com risco de vida.”
Com isso, Gustavo Fraga queria explicar a importância da luta de sua vida: que a cirurgia de trauma vire uma especialidade médica, e não uma subespecialidade de cirurgia geral, como é hoje.
“Ao ser levado para um hospital numa situação como a de Taguaí, é importante que o profissional seja formado, qualificado. E quem é o profissional que melhor faz isso? É o cirurgião do trauma.”
Segundo ele, se for uma especialidade, a cirurgia do trauma atrai mais talentos, mais jovens médicos em formação.
Anualmente, mais de 5,8 milhões de pessoas morrem por trauma em todo o mundo. Esse número é 32% maior que a soma das mortes por malária, Aids e tuberculose. A mortalidade por trauma corresponde a 10% de todas as causas de morte – e estima-se que esse número deve aumentar nos próximos anos. Além disso, os traumas respondem também pela maioria de incapacitações permanentes.
Gustavo Pereira Fraga é graduado em Medicina pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com residência em Cirurgia Geral e subespecialização em Cirurgia do Trauma. Tem mestrado, doutorado e pós-doc na área – este último ele fez na Universidade da Califórnia. Dedicou-se à universidade pública (e é professor da Unicamp) e ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Integrou e foi presidente de sociedades como Sociedade Brasileira de Atendimento Integrado ao Traumatizado (SBAIT) e a Sociedade Panamericana de Trauma. Atualmente é coordenador do Escritório de Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e o representante da América do Sul da International Association for Trauma Surgery and Intensive Care (IATSIC).
Neste 10 Perguntas para o Profissional ele fala sobre sua carreira, sobre o cenário da cirurgia do trauma no Brasil e, claro, sobre sua luta para que ela vire uma especialidade. Veja abaixo os principais trechos da entrevista.
Como você foi parar na cirurgia do trauma?
Tenho uma influência familiar grande porque meu pai era médico, superdedicado, daquela geração à moda antiga. Era clínico e foi um dos primeiros médicos da cidade onde nasci, Salto, no interior de São Paulo. Ele brincava que dormia de branco, porque a qualquer hora podia ser acionado para ir ao hospital. Mais tarde, ele e meu tio, também médico, vieram trabalhar com saúde suplementar, medicina de grupo, aqui em Campinas.
A influência de meu pai foi tamanha que meus dois irmãos mais velhos são médicos também.
Fiz Unicamp e acabei gostando muito da universidade pública. Tanto me identifiquei que minha atuação é até hoje voltada para ela e para o SUS. Entrei na Unicamp em 1987, mesmo ano que a cirurgia do trauma surgiu no Brasil.
A cirurgia do trauma exige decisões rápidas, lida com doentes graves. Achei que era uma área interessante e promissora.
Fiz então cirurgia geral e fui para a cirurgia do trauma pensando que ia ajudar a desbravá-la. Meu professor foi Mario Mantovani, que criou a disciplina Mantovani, que criou a disciplina de cirurgia do trauma na Unicamp em 1987, meses após ser criada a da USP. Fato triste foi que, no meu quarto ano de residência, na hora em que estava a ponto de tomar essas decisões, meu pai faleceu.
Fiz mestrado e doutorado na própria Unicamp e pós-doutorado na Califórnia, sempre na área do trauma.
Quando voltei para o Brasil, vim cheio de ideias. Uma delas era organizar um grande congresso internacional de trauma, que aconteceu em 2008, o Pan-Americano. Foi um sucesso, atraiu 1.500 pessoas. Dessa maneira comecei a fazer parte do clube internacional de profissionais dessa área. Desde então, frequento os grandes nomes da cirurgia do trauma dos Estados Unidos, do Canadá, do mundo inteiro. Em 2010, esse meu professor foi aposentado compulsoriamente, ao fazer 70 anos. E eu, com 41 anos, assumi a chefia da disciplina na Unicamp.
Como é o cenário da cirurgia do trauma no Brasil?
Eu batalho desde sempre para que a cirurgia do trauma tenha um maior reconhecimento. Se você tem um problema ginecológico, vai procurar um ginecologista. Se suspeita de um problema de estômago, procura um gastroenterologista. Para doença do coração vai atrás de um cardiologista.
O cirurgião do trauma você não procura. Muitas vezes você vai estar em uma situação crítica e não vai ter essa possibilidade.
Como no acidente em Taguaí [ocorrido naquele dia, em que uma colisão na estrada entre um ônibus e uma carreta deixou 42 mortos], o Samu faz o resgate e leva correndo para o hospital público – e você não tem muita opção de escolher em que mãos vai cair. É uma situação de urgência, com risco de vida.
Ao ser levado para um hospital numa situação como a de Taguaí, é importante que o profissional seja formado, qualificado.
E quem é o profissional que melhor faz isso? É o cirurgião do trauma. Nos países desenvolvidos, o indivíduo faz a formação de cirurgia geral e, depois, se especializa em trauma. Mas aqui no Brasil, infelizmente, por questões de políticas da área médica e da sociedade, a cirurgia do trauma não é uma especialidade.
Por não ser uma especialidade, e sim apenas uma área de atuação do cirurgião geral, a representatividade dos cirurgiões do trauma fica limitada.
Porque é preciso ter uns programas de treinamentos extensos: o ideal são quatro, cinco anos para formar esse profissional. E como a gente fica sob a guarda da sociedade de cirurgiões gerais, que é o Colégio Brasileiro de Cirurgiões, não há muito espaço para a cirurgia do trauma crescer. Sou um fiel defensor da necessidade da cirurgia do trauma ser uma especialidade no nosso país. Defendo isso diariamente, ninguém aguenta mais, mas é um discurso coerente.
Me parece um grande paradoxo o Brasil, um país que tem milhares de mortes por ano provocadas por acidentes de trânsito, não reconhecer a cirurgia de trauma.
Sim, a terceira maior causa de óbito na população brasileira são as causas externas. A primeira são as doenças cardiovasculares, que mata cerca de 330 mil pessoas por ano. Depois vem o câncer, que vitima cerca de 170 mil brasileiros. Em terceiro lugar estão as causas externas, ou o trauma.
Os eventos de trânsito, homicídios, violência interpessoal, afogamentos, soterramentos, tudo isso são causas externas. E quase 150 mil pessoas, por ano, morrem no Brasil.
Ela é a primeira causa de óbitos na população até 45 anos. A sociedade, de maneira geral, não pensa muito no trauma como um problema sério, grave. Quem tem plano de saúde acha que está seguro. Engano da pessoa: não está segura, não. Porque se ela se acidentar lá em Taguaí, pode ter o plano mais top do Einstein que vai ser atendida lá em Taguaí no hospital público. E é preciso que haja pessoas preparadas para salvar essa vida nas primeiras horas.
O meu desafio é atuar na formação, na melhor qualificação desses cirurgiões do trauma.
É preciso que haja jovens que queiram batalhar por isso e até enfrentar professores, uma geração de professores, que não querem dar espaço para a cirurgia do trauma. É preciso brigarmos por melhor qualificação nas universidades, por uma formação mais longa. E isso tem a ver com bolsa de residência médica, financiamento que vem do governo. Então é uma coisa extremamente complexa, mas que é necessária.
Quais os temas mais quentes em relação à cirurgia do trauma hoje?
A cirurgia do trauma tem quatro grandes pilares. O primeiro é prevenção. O segundo, o atendimento pré-hospitalar, que acontece na cena, no local do evento. É onde atuam as ambulâncias e o Brasil investiu bastante no Samu. É a parte do sistema mais barata, que dá mais resultado. Depois vem o atendimento hospitalar. No hospital, há várias fases do atendimento ao trauma: desde a sala de admissão, no pronto-socorro, passando pelas grandes inovações que tem na área de radiologia, de intervenção minimamente invasiva, procedimentos menos invasivos, cirurgia laparoscópica e terapia intensiva.
A parte mais cara do sistema de trauma é justamente o que diz respeito ao atendimento hospitalar.
O quarto pilar, e neste braço o Brasil está muito subdesenvolvido, é a reabilitação. Uma pessoa que sofre um acidente grave e tem sequela precisa ser reabilitada, ser reintegrada, por exemplo, no mercado de trabalho. E aí o Brasil carece muito nesse sentido. Temos algumas ilhas, como o Hospital Sarah Kubitschek e a rede Lucy Montoro, em São Paulo. Mas poucos têm acesso e conseguem um tratamento integral dessas redes. Há, portanto, grandes novidades em todas essas áreas, desde o ambiente pré-hospitalar, com resgate aéreo, helicópteros muito preparados para remoções, até o atendimento na sala de emergência com tomografia associada, que chamamos de salas híbridas, uma coisa que a gente vê muito nos Estados Unidos – o Brasil não tem nenhuma assim em pronto-socorro.
É possível pensarmos que seria inovador começarmos a pensar em prevenção?
Sim. A questão da prevenção é muito importante, principalmente em um país pobre como o nosso. Quando fui presidente da Sociedade Brasileira de Atendimento Integrado ao Traumatizado fiz questão de criar um comitê de prevenção. E depois fui o coordenador desse comitê por quatro anos. Existem alguns projetos interessantes relacionados à prevenção e um deles é o do Observatório Nacional de Segurança Viária, o Maio Amarelo.
O Maio Amarelo é um programa novo, começou em 2014, que que nasceu no Brasil e está hoje em 29 países.
É para chamar a atenção da sociedade que o trânsito precisa ser encarado como algo que apresenta riscos. Qualquer tipo de distração ou comportamento inadequado pode resultar na morte ou em uma sequela grave à pessoa. A questão do celular, por exemplo, ou a história de “só uma cervejinha”.
Precisamos de mais políticas públicas para melhorar a prevenção.
Trabalhar com prevenção é necessário para que não ocorram tantos eventos relacionados ao trânsito e às causas externas. E para melhorar o tratamento principalmente na fase inicial do atendimento, principalmente na fase inicial. Outro projeto de prevenção bacana é o P.A.R.T.Y. (Prevention of Alcohol Related Trauma on Youth), sigla que significa festa em inglês, que é canadense e com o qual trabalhamos aqui em Campinas. Levamos jovens do Ensino Médio até o hospital para passar uma tarde lá vendo palestras com alunos das Ligas do Trauma. Eles vão ver pessoas internadas no hospital que bateram o carro, por exemplo. E pacientes que têm sequelas mais graves e são voluntários conversam com os jovens. Já há estudos que mostram o impacto disso. Para mim, é uma das maiores inovações.
O que são as Ligas do Trauma?
É um programa de acadêmicos de medicina e de enfermagem que começou aqui na Unicamp em 1992, um patrimônio made in Brazil. Quando estão no segundo ano do curso, eles podem optar por fazer parte de uma liga, uma atividade extracurricular. E eles se dedicam ao tema do trauma participando de uma série de aulas, atividades práticas, plantões de fim de semana.
As ligas trazem precocemente o aluno para dentro do hospital. E fazem com que aumente a participação dos egressos nos programas de cirurgia do trauma e de cirurgia geral.
Ou seja, torna-se uma maneira de atrair esses jovens para essa especialidade. O programa começou aqui no Brasil e hoje já está em uns dez países. Esses programas que nós criamos no Brasil e difundimos para o mundo são muito inovadores. Mas, quando falamos em tecnologia, provavelmente nós vamos ter que importar do Japão, dos Estados Unidos, de Israel, que tem muita coisa boa lá. São países que estão mais acostumados a lidar com o trauma no ambiente militar, cultura que não temos aqui. Muitos dos grandes avanços da medicina vêm das guerras.
Tem alguma linha de pesquisa na qual você esteja envolvido agora?
Meu foco maior é na questão do trauma, com a assistência ao traumatizado. Mas tenho trabalhado muito com educação médica também. E essa linha de educação é um braço forte da telemedicina. Uma coisa que a pandemia mostrou é a necessidade da telemedicina. Temos uma reunião com um grupo de Miami, de países da América Latina, das bases militares dos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão, conectando os cirurgiões. Fazemos isso há 10 anos semanalmente: toda semana discutimos casos com a Sociedade Panamericana de Trauma.
E essas reuniões com a comunidade internacional são feitas através de uma rede de telemedicina que existe no Brasil que é muito robusta, a Rute, a Rede Universitária de Telemedicina.
Os hospitais universitários são cadastrados nessa rede, a Unicamp está desde 2009. Começamos a fazer em 2010 essas reuniões com os cirurgiões do trauma. E com isso já passaram 10 turmas de medicina. Hoje é mais fácil entender isso, mas há 10 anos não poderíamos fazer isso nos nossos celulares. Era uma sala especial, com cabeamento especial, internet de velocidade maior. Dentro da Rute tem os SIGs, que são os grupos de interesse.
Nós criamos um SIG Covid-19 logo no início da pandemia, em março.
No início, fazíamos reuniões três vezes por semana. Agora são reuniões semanais – e tem artigos publicados com essa experiência. Chamamos pessoas do exterior também. Agora estamos discutindo muito a questão da vacina e da segunda onda. Estou participando também da Associação Brasileira de Telemedicina e Telessaúde. Tenho uma participação associativa muito grande e sou um membro ativo. E eu trabalho muito com aluno, o que é muito bom. Porque eles têm a inovação. Eu tenho a experiência.
Como vocês criaram o SIG de Covid-19 e como ele funciona?
Eu estava de plantão bem no comecinho de março, com um aluno muito interessado, inovador, e ele falou: “Professor, e se a pandemia vier para valer? O que vai acontecer com nós, alunos? Vamos ser afastados?” Respondi que era provável, porque não fazia sentido eles virem fazer uma atividade extracurricular dentro do hospital com o risco de pegar a doença. E falei que eles poderiam trabalhar à distância. Mais alunos souberam e quiseram ajudar. Pensei então em criar um sistema de telemedicina ou de informações por telefone.
Um aluno gostou da ideia e em menos de 24 horas me chamou perguntando por que não criávamos um sistema de atendimento ao público por telefone.
A pessoa poderia ligar e descrevia os sintomas para saber se precisava vir até o hospital. Pensei que ajudaria muito, porque a maioria não precisa vir ao hospital mesmo. E criamos o Telessaúde, que começou chamando Telessaúde sobre Covid e, depois, virou o Orienta Covid. Esse projeto se espalhou para várias cidades do Brasil oferecendo o serviço por telefone ou WhatsApp. Os alunos foram atrás de tecnologia e uma pós-graduanda da ciência da computação ajudou. As pessoas ligavam e caía em uma central, que distribuía para os alunos que estavam de plantão.
O que teve de mais interessante nos congressos deste ano?
Fizemos a 22ª edição do Congresso Brasileiro das Ligas do Trauma em novembro com 3.650 participantes, foi o maior congresso de trauma no Brasil. E acho que, em todos os que participei, o maior destaque foi a telemedicina. Ela se encaixa bem com a cirurgia do trauma. Por exemplo, o desastre de Taguaí.
Pela telemedicina, se o Brasil fosse bem estruturado, os médicos de Taguaí poderiam se conectar comigo e discutir os casos em tempo real, porque quem está cuidando das vítimas pode não ter experiência.
A legislação ainda é meio duvidosa em relação a isso, existem algumas pequenas falhas. No trauma, a telemedicina nos ajuda também a manter contato com a ambulância, o indivíduo que está na cena do trauma. Então a aplicabilidade é muito grande nessa área. Já fazemos isso há algum tempo. Por exemplo, na tragédia da boate Kiss em Santa Maria [RS]. Cirurgiões amigos nossos atenderam os garotos que chegavam e nós usamos a rede de telemedicina para auxiliar as vítimas. Na época, demoraram a descobrir que houve a aspiração por substâncias tóxicas que estavam no teto da boate. E a gente fazia a discussão dos casos em tempo real por telemedicina. Isso foi em 2013.
Onde o senhor vê a cirurgia do trauma em cinco ou 10 anos?
No Brasil, o que eu sonho é que a cirurgia do trauma tenha o devido reconhecimento. Que os profissionais tenham o devido reconhecimento e a devida valorização pelo sistema público do SUS através de uma rede, que é o Sistema de Trauma, coisa que existe nos Estados Unidos há mais de 40 anos e nós não temos aqui.
O que mais salva vidas na cirurgia do trauma hoje? Não é robô, não é helicóptero: é organizar o sistema de atendimento.
O doente certo tem que ir para o local certo em um tempo curto. E isso atinge todos os quatro pilares sobre os quais falei: da prevenção à reabilitação. Nós ganhamos o apoio recente da Abramede, que é a Associação Brasileira de Medicina de Emergência. A medicina de emergência é uma área nova do Brasil, tem cinco anos apenas e começou com um programa de residência médica experimental em 10 serviços. Hoje tem 46 serviços no Brasil. Não se formava nenhum médico de emergência há cinco anos. Agora, formam-se cerca de 80 por ano. Em cinco, dez anos vão ser 400. E aí, sim, vamos ter profissionais qualificados nas medicinas de emergências. O médico emergencista é um médico clínico. O cirurgião do trauma é o parceiro dele na cirurgia. Esse é o teamwork.
Acho que você até já me respondeu esta, mas vamos lá: qual é a notícia que você gostaria de ler em relação à sua especialidade?
Essa é fácil: cirurgia do trauma virou especialidade médica no Brasil [risos].