Conversar sobre hormônios durante o jantar pode não ser o hábito de muita gente, mas na casa de Tarissa Beatrice Zanata Petry o assunto deve ser inevitável. Aos 39 anos, ela tornou-se, ao lado do marido também médico, uma das maiores porta-vozes do país de um método recente para o tratamento e até a remissão do diabetes tipo 2: a cirurgia metabólica.
Espécie de efeito colateral do bem da cirurgia bariátrica, a metabólica não difere da parente mais famosa na técnica, e sim na finalidade. “Os pesquisadores começaram a ver que as pessoas que tinham diabetes mais avançada faziam cirurgia bariátrica para perder peso e não precisavam mais tomar tanta insulina, quando não paravam com ela”, diz Tarissa.
“A pressão arterial melhorava, o colesterol melhorava. Os benefícios eram muito maiores do que só a perda de peso”, conta. “E então começaram as pesquisas para descobrir a razão de a parte metabólica das pessoas melhorar tanto com a cirurgia.”
Encantada com a novidade, Tarissa começou a estudá-la com um dos pioneiros do país, o cirurgião Ricardo Cohen – com quem, mais tarde, ela se casou.
Endocrinologista do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz há 10 anos, ela bateu um papo com Future Health sobre inovação em sua especialidade, no qual falou sobre a pesquisa que conduz com Ricardo, sobre novos medicamentos e por que não chama uma pessoa com obesidade de “obesa”. Confira:
Como a endocrinologia entrou em sua vida?
Não tenho pais ou tios médicos, mas sempre gostei muito de medicina, acho que eu não tinha vontade de fazer outra coisa. Entrei na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo numa época em que meu pai, engenheiro de segurança, estava desempregado. Tive depressão no primeiro ano da faculdade e quase abandonei tudo. Hoje eu olho o primeiro anista de medicina e eu vejo uma criança – e então sou até mais gentil comigo, com o que eu passei. Mas não sou de desistir e segui em frente. Ao longo da faculdade fui pensando sobre minhas especializações e estava um pouco perdida. Sempre gostei demais dessa parte de hormônios e achava que queria ser ginecologista, mas a obstetrícia não me atraía.
Fiz clínica médica por dois anos e, quando terminei, tinha certeza que minha especialização seria endocrinologia.
Comecei a trabalhar em policlínicas em São Bernardo do Campo [Grande ABC], onde nasci e morava, e pensava que aquela seria minha vida. Só que recebi a ligação de um dos meus professores de endócrino.
O doutor João Eduardo Nunes Salles falou: “Preciso de alguém para ir para os Estados Unidos aprender uma técnica de pesquisa, quer?”. Nem pensei e respondi que sim.
Só quando desliguei pensei que não sabia nem falar inglês. Junto disso veio um convite para eu voltar para a Santa Casa de São Paulo. E fui então aprender essa técnica e comecei a fazer pesquisa com um cirurgião bariátrico, que hoje é meu marido. Desde o início me apaixonei por pesquisa por cirurgia bariátrica e metabólica e por obesidade e diabetes. Acabei ficando no ambulatório da Santa Casa, onde me inscrevi para a pós-graduação. Com as publicações que tinha, pulei direto para o doutorado, com a tese em cirurgia metabólica para diabetes.
Me conta um pouco dessa sua linha de pesquisa?
A cirurgia para o diabetes é mais nova que a cirurgia bariátrica. Os pesquisadores começaram a ver que as pessoas que tinham diabetes mais avançada faziam cirurgia bariátrica para perder peso e não precisavam mais tomar tanta insulina, quando não paravam com ela. A pressão arterial melhorava, o colesterol melhorava. Os benefícios eram muito maiores do que só a perda de peso. O nome bariátrica vem realmente de “bar”, que em grego significa peso. E então começaram as pesquisas para descobrir a razão de a parte metabólica das pessoas melhorar tanto com a cirurgia.
Meu marido, Ricardo Cohen, é um dos pioneiros no Brasil em estudar cirurgia para diabetes.
Os estudos em pessoas que não tinham tanta obesidade começaram. Para a cirurgia bariátrica, a indicação era para pessoas com índices de massa corpórea [peso da pessoa dividido pelo quadrado da altura] altos, de 40, 50. E o objeto do estudo era pessoas com o IMC mais baixo, de 30, sem nem indicação para operar. E eles começaram a comprovar indíviduos que não tinham uma obesidade tão avançada, mas que tinham diabetes avançado, melhoravam demais com a cirurgia.
Hoje a gente começa a falar muito mais em cirurgia metabólica do que cirurgia bariátrica.
Tecnicamente ela não muda. A cirurgia que hoje tem o melhor custo-benefício para melhorar a diabetes é uma cirurgia antiga, que é o bypass gástrico, ou gastroplastia vertical com derivação intestinal em Y de Roux, que é um desvio feito na primeira porção do intestino e redução de estômago. A técnica não mudou, mas o objetivo da cirurgia sim. O objetivo é melhora metabólica, muito mais do que a perda de peso. E a perda de peso é o efeito colateral bom da cirurgia.
E a indicação? Para quem é exatamente?
Isso também mudou bastante. Depois de muito estudo, chegou-se à conclusão de que pessoas que tinham um peso menor também se beneficiavam dessa cirurgia em relação à melhora do diabetes. Sociedades no mundo inteiro começaram a mudar a indicação para a cirurgia. Antigamente a indicação era de cirurgia bariátrica e metabólica, em geral, para IMCs a partir de 35, se tivesse alguma doença associada, inclusive diabetes, ou acima de 40 mesmo sem doença associada.
As sociedades no mundo inteiro já aceitam hoje que se façam cirurgias em pessoas com IMC acima de 30 que tenham diabetes descompensada, apesar do tratamento clínico otimizado.
Com essas pesquisas, as pessoas conseguiram inclusive mudar a indicação da cirurgia. No Brasil o Conselho Federal de Medicina já aceita essa indicação e acabamos de terminar uma consulta pública para a indicação da cirurgia ser coberta pelos convênios. Espero que realmente dê certo, porque isso beneficiaria muita gente. O diabetes é uma doença traiçoeira.
Você continua envolvida na pesquisa?
Saí do hospital-escola Santa Casa de São Paulo já faz anos, mas talvez eu faça até mais pesquisa agora no Oswaldo Cruz. O Ricardo é muito conhecido e consegue patrocínio para nossas pesquisas. Temos uma hoje que teve a publicação do resultado de dois anos, a MOMs. Estamos estudando os pacientes com diabetes que têm já nefropatia, alteração inicial da lesão renal do diabetes. Muitos estudos mostram a eficácia dessa cirurgia em relação ao tratamento clínico para a melhora da diabetes.
Mas nós não tínhamos um estudo bem-feito para a melhora das complicações do diabetes. E estamos com esse estudo randomizado em andamento.
Vamos fazer uma publicação de cinco anos, mas a publicação de dois anos já mostra que a cirurgia é, sim, eficaz para também controle das complicações renais do diabetes [publicado na Jama Surgery, o estudo aponta que cirurgia metabólica é o tratamento mais eficaz na remissão de complicações renais em pessoas com diabetes tipo 2]. Gosto demais de pesquisa porque acho realmente fascinante mudar consenso, mudar o jeito de trabalharmos e o jeito de cuidarmos das pessoas e fazer a diferença.
Qual é a menina dos olhos da endocrinologia hoje?
O diabetes é a doença em que mais se investe. Temos drogas novas, muita evolução nessa área – e uma progressão de quantidade de pessoas que vão ter diabetes muito grande. Estamos em uma curva ascendente total, apesar de todos esses tratamentos clínicos. A obesidade caminha um pouco junto da diabetes. Também temos muita dificuldade de sucesso no tratamento clínico, principalmente de pessoas que precisam perder muito peso. E éramos muito limitados em relação à medicação.
Hoje a grande boa notícia é que temos medicações que tratam não só a diabetes, como a obesidade – e podemos fazer esse tratamento conjunto.
Antes a gente tratava diabetes só baixando glicemia. Hoje, a gente quer também que a pessoa diminua peso, para que a doença não progrida rapidamente. Queremos que ela não tenha complicação renal, de retinopatia e nem de membros – e muito menos que morra precocemente de infarto e derrame. As medicações hoje fazem tudo isso: previnem complicações renais, diminuem chance de infarto e derrame. Estamos até em uma posição privilegiada e com muitos estudos na área e com muita medicação sendo lançada. Fora a opção da cirurgia metabólica.
Que fármacos são esses tão inovadores?
Temos hoje um fármaco para a diabetes tipo 2 que é análogo de um hormônio que se chama GLP-1. Esse é um dos hormônios que sobem pós-cirurgia metabólica. Ele age não só no pâncreas, ajudando a produzir a insulina de acordo com o que o paciente come, mas também no cérebro, no centro da saciedade – e, assim, a pessoa tem menos fome. Ele age no estômago, diminuindo o esvaziamento gástrico, então, a pessoa fica mais tempo com a comida ali. Ele tem receptor no coração, diminui pressão arterial, e teve benefícios em pacientes com diabetes com menor chance de infarto e derrame.
É uma medicação extremamente completa, com muitos receptores no corpo. E a indústria está estudando algo também que corre muito em segredo, que são medicações com duplo receptor.
Elas agem não só no receptor de GLP-1, mas em outros hormônios para poder ajudar tanto na diminuição de peso quanto no diabetes. Quer mais? Antes a hemoglobina glicada [exame de sangue] era a principal forma de controle da pessoa com diabetes. Ela mostra a média da nossa glicemia nos últimos três meses. Só que se meu paciente tem muito pico de glicemia e muita hipoglicemia, posso ter uma média boa. Mas sabemos hoje que isso também faz o paciente complicar.
Temos agora monitores de glicose contínuos. Geralmente é um cateter que se coloca no braço e se troca a cada 14 dias.
Existe também esse dispositivo acoplado a bombas de insulina, para quem tem diabetes tipo 1. Esses dispositivos medem a glicemia quantas vezes você quiser e pode ser conectado a um aplicativo no celular. Ele disponibiliza um gráfico e mostra exatamente quanto tempo meu paciente ficou dentro daquela meta de glicemia. Hoje, portanto, a gente fala muito mais em “tempo na meta” ou “tempo no alvo” da glicemia. E ele tem que ser acima de 60% para considerar um tratamento de sucesso.
O que os congressos trouxeram de interessante neste ano?
Este ano consegui participar da grande maioria dos congressos, o que eu não conseguiria se não tivessem sido online – ou pelo custo ou pelo tempo. Por outro lado, quando eu ia para congressos, minha agenda ficava bloqueada, o que não aconteceu neste ano: eu trabalhava o dia inteiro, cuidava da casa e ainda participava deles. Por isso que o cérebro não acompanhou tanto quanto eu gostaria.
Mas, além da medicação do análogo de GLP-1, vi que vamos ter um lançamento de uma droga oral que já é usada para diabetes, mas agora para obesidade.
Fizeram um estudo com uma dose superior da medicação injetável e realmente a perda de peso tem melhorado com essas alterações. Só que ainda tem efeito colateral, então é preciso balancear um pouco. Mas esse comprimido foi uma novidade da qual ouvi muito nos congressos. Deve chegar ao Brasil ano que vem, se tudo der certo. Quando analisamos os estudos de vida real, vemos que eles são muito alarmantes.
Medicamento para hipertensão arterial, por exemplo, cerca de 50% das pessoas não tomam direito.
É uma loucura isso, metade das pessoas. Esses remédios injetáveis para diabetes, se você mantém por muito tempo, 30% das pessoas, mais ou menos, continuam tomando só. É muito complicado. Então, se a gente melhora a posologia, também melhoramos a chance do nosso paciente aderir e manter o tratamento.
Como é o panorama hoje no país da obesidade e do diabetes?
O panorama no Brasil e no mundo não é muito animador. A Federação Internacional do Diabetes faz sempre uma progressão de quantas pessoas com diabetes vai haver mais para a frente. E a progressão para 2045 é exponencial. Ela só aumenta. Com a obesidade, a mesma coisa. Nenhum país do mundo está conseguindo conter a obesidade. É realmente desanimador nesse sentido.
Você deve ter percebido que eu tomo cuidado para não falar “obeso” e “diabético”, e sim “pessoa com obesidade” e “pessoa com diabetes” – e isso é importante.
Em nossos questionamentos das razões de não vencermos a obesidade, com tanta informação disponível e tanta medicação nova, chegamos à conclusão de que o preconceito é uma coisa que freia a chance de sucesso. A obesidade é a única doença que não é vista como doença por ninguém, nem pela pessoa que tem obesidade nem pelos profissionais de saúde que cuidam dela ou pela população em geral. A obesidade é vista como escolha – e um pouco o diabetes. Muitas vezes, dou o diagnóstico de diabetes para a pessoa e a primeira coisa que ela fala é: “Mas eu nem como doce”.
A culpa faz muita parte da vida da pessoa com obesidade e diabetes.
E isso faz ela pessoa não procurar ajuda: não tenho uma doença, a culpa é minha, então ninguém pode me ajudar. O profissional de saúde acaba, portanto, não sendo agressivo no tratamento. Esse preconceito foi fazendo a gente empurrar tudo com a barriga: se a pessoa não quer se ajudar, por que eu vou fazer isso? E em 2020 a gente começaria uma campanha mundial muito forte contra esse preconceito, contra o estigma da obesidade – mas a pandemia nos atropelou.
A ideia era mostrar que diabetes e obesidade são doenças que precisam de tratamentos agressivos e que não dependem da pessoa. E paramos então de colocar na pessoa o rótulo da doença.
Não falamos que alguém com câncer é canceroso. Por isso é pessoa com obesidade e pessoa com diabetes. Às vezes faço esse discurso durante toda a consulta e, no fim, o paciente fala: “Ah, mas eu sou sem vergonha”. A pessoa mesmo se rotula, é muito triste.
E como fica o paradoxo de obesidade ser uma doença em relação ao movimento de “o corpo é meu”? Isso pode ser visto como gordofobia?
Falo que parece que ando em uma corda bamba e não posso dar um passinho para o lado com o risco de cair. Às vezes atendo pacientes bem novas que não falam sobre ter obesidade. Por um lado, vejo que ela tem a doença. Sou médica e preciso falar sobre isso com ela, preciso dar o diagnóstico e fazer o tratamento.
Por outro lado, muitas vezes, se toco no assunto sou vista como preconceituosa.
“Por que você está me dizendo isso?” Tenho paciente que fala que é feliz com o corpo que tem e que está lá porque a família fala para emagrecer. Então é uma corda bamba. Mas é preciso encarar e fazer com que as pessoas também encarem isso como doença. Estava outro dia assistindo a um programa da Silvia Popovic, que é paciente do Ricardo e é operada. A Jojo Toddynho estava lá e falou que não queria emagrecer, que estava bem assim. E a própria Silvia disse: “Mas isso tem que ser tratado, é uma doença”. Deu até um certo desconforto na hora. Mas eu jamais vou pensar na aparência de um paciente meu. Eu estou falando de saúde.
Não existe obesidade e saúde, não existe obesidade saudável.
Sempre vai ter uma articulação sobrecarregada, uma doença metabólica, uma inflamação. E estudos mostram que pessoas com obesidade têm mais chance de mortalidade precoce. Como não achar que é uma doença, como não tratar agressivamente?
Onde você acha que a endocrinologia vai estar em cinco ou dez anos?
Acho que vamos continuar com essa luta contra a obesidade e diabetes. Realmente não acredito que isso vai acabar tão cedo. Não é ser pessimista, coisa que nunca sou. Sei que também vamos ter muito mais medicação a cada ano, mais arsenal terapêutico e também evolução da cirurgia, ajudando as pessoas com mais acesso. Se pensarmos em quantas pessoas precisam operar e quantas realmente conseguem, o número deve ser de apenas 1% no mundo.
Qual notícia você gostaria de ler sobre a sua especialidade?
Que as pessoas conseguiram acesso ao melhor tratamento de diabetes e obesidade. Infelizmente todas as melhores medicações e também a cirurgia têm alto custo. A maior parte das pessoas não têm convênio médico e mesmo as que têm às vezes não conseguem a cirurgia – lembra que falei da consulta pública para cirurgia metabólica para IMC a partir de 30 no convênio? Nem isso temos hoje ainda. Espero que isso mude em breve.