Em busca de uma alternativa para tratar pacientes com quadros de demência, principalmente Doença de Alzheimer, a geriatra e médica da família Letícia Mayer encontrou na prescrição da cannabis medicinal uma alternativa viável para melhorar a qualidade de vida dos idosos que passavam por suas consultas.
Intrigada com os resultados promissores das pesquisas e dos relatos de colegas da área, a profissional foi atrás de informação e de formação. Três anos depois desse passo inicial, Letícia reconhece que estudar e prescrever os óleos de cannabis mudaram os rumos de sua prática médica.
“Um dos grandes problemas dos pacientes geriátricos é a polifarmácia, pois as interações medicamentosas costumam trazer efeitos colaterais e diminuem a qualidade de vida das pessoas, principalmente as que sofrem com as demências”, conta Letícia.
“A introdução da cannabis medicinal e a redução ou até mesmo retirada de medicamentos benzodiazepínicos e antipsicóticos, principalmente, traz resultados surpreendentes. Sinceramente não imaginava ver tanta melhora dos pacientes.”
Para a geriatra, formada há 13 anos pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), tanto pacientes quanto o médico precisam entender que não se trata mais de uma questão de aceitar o uso ou não da cannabis.
“É uma nova classe terapêutica com comprovação científica suficiente. Já passamos do momento de dizer ‘não aceito o uso de cannabis’, é hora de estudar, conhecer os benefícios reais e usá-la na prática clínica de forma ampla. Não podemos ter cannabisfobia”.
Já são mais de 30 patologias que podem ser tratadas com os óleos extraídos da flor da cannabis. Os tratamentos mais procurados atualmente são para dores, náusea, espasmos musculares, depressão, ansiedade, esclerose múltipla, baixo apetite, problemas de sono, autismo, epilepsia, Alzheimer, Parkinson e cuidados paliativos do câncer.
Uma das maiores polêmicas relacionadas ao uso da planta é que ela não atuaria na evolução dos quadros e somente nos sintomas. Mas, para Letícia, isso é um ganho, uma vez que em muitas doenças, principalmente nas neurodegenerativas, os desconfortos são muito intensos.
“Sim, por enquanto as evidências indicam que a cannabis atua na melhora da intensidade dos sintomas mais difíceis e não diretamente no desenvolvimento da doença em si. Mas isso é um ganho imenso, uma vez que é capaz de mudar a rotina não só do paciente, como dos cuidadores, das famílias que convivem com a doença. Todos os envolvidos nos cuidados melhoram junto física, emocional e até financeiramente”.
Estudos clínicos em diversos países comprovam o efeito neuroprotetor dos canabinóides e como estes podem ser úteis para prevenir e tratar a evolução de doenças, como a de Alzheimer, por exemplo.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 35,6 milhões de pessoas sofrem com a doença no mundo. Até 2030, este número tende a dobrar e, em 2050, a previsão é de que triplique.
No Brasil, estima-se que cerca de 1,2 milhões de pessoas tenham a doença, sendo que muitas ainda não tiveram acesso ao diagnóstico e tratamento adequado.
Nesse ritmo de crescimento dos casos, mais médicos devem buscar alternativas para tratar ou prevenir o processo da doença em seus pacientes. Os melhores resultados da cannabis medicinal para o Alzheimer têm sido observados na regulação do sono, do apetite e da agressividade.
“Conhecemos bem os sintomas mais comuns e que se manifestam primeiro, como a perda de memória. Porém, para muitas pessoas com Doença de Alzheimer a agressividade e a insônia são importantes complicadores”, explica Letícia.
A dor é outro ponto que diminui o bem-estar dos pacientes. Um estudo publicado na Frontiers in Pharmacology mostrou que muitos pacientes diagnosticados com Doença de Alzheimer relatam dores de moderadas a intensas. Porém, com as disfunções cognitivas causadas pelo avanço do quadro, há dificuldades em expressar a dor.
Por ter uma composição complexa, a cannabis medicinal ainda permanece um mistério para muitos profissionais da saúde.
“Somos habituados a ver tudo com objetividade e a planta traz mais de 100 canabinóides. Além disso, não aprendemos sobre o sistema endocanabinóide na universidade e somente a partir dos anos 90 passamos a ter mais informações e estudos sobre a sua importância no corpo. A cannabis não vem com bula, não tem uma fórmula única e isso causa um certo bloqueio”, relata a médica.
Para diversos profissionais, mesmo os interessados em entender os benefícios do uso da planta medicinal, um dos gargalos é acertar a dosagem para que os tratamentos tragam resultados mais efetivos.
“Só com muito estudo vem a segurança para fazer a prescrição. Como o uso da cannabis medicinal é personalizado, pode demorar um pouco para ajustar a dose, encontrar a melhor concentração para o caso tratado. Por isso, é importante a reavaliação constante do paciente.”
Um olhar atento para o paciente e suas condições também ajuda no acerto da dose. “É uma troca. O médico prescritor tem a obrigação de ser fonte de informação para o paciente e sua família. Não basta uma boa anamnese: é preciso explicar o que é o remédio feito do óleo de cannabis e como ele funciona”.
Letícia afirma fazer questão de mostrar que o óleo é extraído da flor da cannabis, quais são os tipos de óleos, os modelos de acesso aos medicamentos, as diferenças entre as concentrações, como são as marcas importadas e as nacionais. “Quanto mais informação na consulta, maiores as chances de adesão ao tratamento”, garante.
A autoridade para acertar a dose é uma das questões abordadas nos cursos de formação ministrados pelo urologista Cesar Camara, doutor em ciências pela Universidade de São Paulo e um dos pioneiros no uso da cannabis medicinal no Brasil, e equipe.
Tanto que a Biocase, empresa de cannabis medicinal liderada por Camara, tem investido na formação de prescritores e trabalhado por todo o país para levar cursos, palestras e workshops para médicos, dentistas e até veterinários.
“Já formamos mais de 3.500 médicos em todo Brasil com cursos online e presencial e priorizamos parceiras importantes, como a Associação Paulista de Medicina. Porém, menos de 10% começa a prescrever, seja por insegurança seja por necessidade de uma formação mais profunda em sua especialidade”, diz Camara.
Segundo o especialista, quanto mais o médico entender sobre a atuação dos tipos de óleos e suas indicações, e que a cannabis vai tratar os sintomas recorrentes das doenças e não curá-la de uma hora para outra, mais fácil será a escolha e o ajuste da dosagem ao longo do tratamento.
Letícia conta sobre um caso que a impressionou. Uma idosa de 83 anos, com a Doença de Alzheimer em estado avançado, chegou à primeira consulta usando ansiolítico à base de clonazepam três vezes ao dia, além de uma dose alta de olanzapina, antipsicótico amplamente utilizado em pacientes com a doença.
Um ano depois do uso do óleo full spectrum – que contém todos os compostos encontrados naturalmente na cannabis sativa – a médica retirou ansiolítico e reduziu de forma significativa o antipsicótico
De acordo com a médica, o filho da paciente relatou que outro médico que atende a paciente ficou incrédulo com os resultados após o uso da cannabis e perguntou o que haviam feito. Ao relatar o sucesso do tratamento, o colega questionou as evidências e recebeu a seguinte resposta: “a evidência está na sua frente, doutor”.
“Por que não temos preconceito com morfina? Ou com medicamentos como neurolépticos que têm até morte entre os efeitos colaterais descritos na bula”, provoca Letícia.
Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o número de autorizações de importação dos medicamentos à base de cannabis subiu de 8.522 em 2019 para 19.120 em 2020. Até novembro do ano passado, chegou a 33.793.
Em 2019, a porcentagem de autorizações para pacientes com mais de 65 anos saltou para 23,6%, em comparação a apenas 6,8%, em 2015. E com o aumento das prescrições, a pressão pela aprovação de produtos também cresce: já são 18 extratos autorizados pela agência regulatória para a venda no Brasil.
Mesmo com evidências postas, o uso na geriatria ainda traz receios entre os que temem as interações com os medicamentos tradicionais ou mesmo que desconhecem que o possível efeito psicoativo do THC, por exemplo, pode ser controlado e acompanhado.
“Hoje os estudos são consistentes e os relatos dos pacientes contrariam as negativas. A geriatria precisa ser feita com carinho, escuta, cuidado, seriedade e humanização. A atenção com o paciente e seus cuidadores deve ser feita de forma integral. Por isso, não dá mais para ter preconceito com uma terapia tão eficaz. Está tudo aí para quem quiser conhecer e entender”, finaliza Letícia.