No final de maio de 2024, o Rio Grande do Sul sofreu a maior tragédia ambiental de sua história. O Brasil inteiro acompanhou, nas semanas e meses seguintes, o rastro de destruição material e emocional causado por enchentes que assolaram 95% das cidades do estado.
Em meio a esforços para salvar vidas, conter as águas e reerguer o que foi possível preservar – dentre vidas e infraestruturas –, uma empresa com foco em saúde mental usou a criatividade para fazer a sua parte na reconstrução.
Do fim de abril até meados de julho de 2024 (quando essa reportagem foi escrita), a Vittude, referência no desenvolvimento e gestão estratégica de programas de saúde mental para empresas, já havia atendido cerca de 2.000 pessoas em situação de emergência humanitária no Rio Grande do Sul.
As vítimas auxiliadas com suporte emocional fazem parte de um grupo de 12 empresas clientes, como Sodexo, BRF e Zamp®, que acionaram a companhia para intensificar e ampliar seu escopo de atuação. Das 700 mil pessoas impactadas pelas soluções da Vittude, 120 mil são da região Sul do Brasil.
No caso de Zamp®, dentre os 111 funcionários impactados diretamente pelas enchentes, 94 estão sendo acompanhados por assistentes sociais, médicos do trabalho, e em casos críticos, por psicólogos especialistas em catástrofes, disponibilizado pela Vittude.
A BRF, por sua vez, estendeu o serviço de assistência psicológica e telemedicina para colaboradores e familiares afetados pelas chuvas, e disponibilizou auxílio emergencial de R$6 mil para aqueles que perderam a casa.
Já a Sodexo disponibilizou a todos os seus 3 mil colaboradores residentes no Rio Grande do Sul a teleterapia individual da Vittude, com duas sessões de terapia online gratuitas ao mês e acesso a grupos de apoio pela plataforma.
“Para agir em contextos de desastre é crucial entendermos as necessidades específicas de cada grupo. Para as pessoas diretamente impactadas, é necessário garantirmos segurança, alimentação, água potável e medicamentos”, explica Tatiana Pimenta, CEO e cofundadora da Vittude.
“Para aqueles que estão em segurança, mas indiretamente impactados como colegas, familiares e profissionais que estão atuando na linha de frente, o momento é de acolhimento”, completa.
Além disso, a empresa tem produzido materiais com orientações para momentos de crise humanitária que tem ajudado diversas organizações a coordenarem ações, como explica Luckas Reis, Head de Psicologia e Pessoas na Vittude: “O trabalho de saúde mental pós-desastre não termina em uma semana ou um mês. Existem empresas que ainda estão realizando esse acompanhamento e continuarão pelos próximos seis meses”, afirma.
“É fundamental cuidar do custo emocional e psicológico da reconstrução, e da elaboração de lutos e perdas”, conclui.
Num bate-papo com FUTURE HEALTH, Reis detalha como tem sido a experiência da Vittude em apoiar milhares de pessoas impactadas pelas enchentes:
LUCKAS REIS: Logo que começaram as inundações, numa sexta-feira, nossos clientes nos procuravam preocupados sobre os efeitos das enchentes e sobre o que poderia ser feito para ajudar. Não tínhamos uma operação preparada para lidar com esse tipo de complexidade.
Nosso trabalho é majoritariamente digital, mas nessa situação de calamidade pública, o acesso à internet era um luxo perdido.
As vias de acesso estavam comprometidas e não podíamos deslocar profissionais para lá. Nosso objetivo era apoiar os colaboradores das empresas com quem trabalhamos e de outras que nos procuraram.
Enquanto as equipes de saúde do SUS e a Defesa Civil gerenciavam a crise populacional, montamos uma equipe de emergência e começamos a desenvolver soluções para apoiar essas empresas. Na semana seguinte, já tínhamos um plano e uma estrutura para atender a demanda no Rio Grande do Sul.
LR: Primeiro desenhamos estrategicamente a abordagem.
Existem materiais e protocolos de emergência focados em saúde mental, com ênfase no acolhimento psicológico e na prevenção do estresse pós-traumático.
Estudamos esses protocolos e os adaptamos à nossa realidade. Separar o público entre vítimas primárias e secundárias foi crucial.
Vítimas primárias, que sofreram diretamente, precisavam de segurança, alimentação e abrigo, enquanto vítimas secundárias, impactadas emocionalmente por terem parentes ou colegas diretamente afetados, eram nosso foco principal.
Desenhamos possibilidades de acolhimento emocional e psicológico inicial e psicoterapia breve com especialistas em emergências.
Mobilizamos internamente um grupo de psicólogos e médicos. Contamos com aproximadamente 50 psicólogos dedicados a esse trabalho, além de quase 10 profissionais técnicos da nossa equipe.
LR: No primeiro trabalho, tivemos várias frentes de atuação. A principal foi a criação de grupos de acolhimento para vítimas secundárias. Esses encontros online, conduzidos por psicólogos especialistas, tinham duração de uma hora e meia e até 10 participantes.
Este era um espaço para os participantes elaborarem o luto e expressarem suas emoções, sendo uma importante medida preventiva contra o transtorno do estresse pós-traumático.
Outra frente foi a busca ativa. Recebemos a base de contato dos colaboradores e nossos psicólogos internos faziam ligações oferecendo acolhimento psicológico. Essas chamadas permitiam avaliar a gravidade do sofrimento e encaminhar os indivíduos para psicoterapia, adaptada para ser realizada por telefone devido às dificuldades de acesso à internet.
Além disso, estabelecemos um canal receptivo para que colaboradores das empresas pudessem ligar e receber apoio psicológico e informações sobre benefícios disponíveis.
Algumas empresas precisaram de programas mais estruturados, incluindo triagens com escalas de avaliação de sofrimento psíquico e propensão ao estresse pós-traumático.
Os atendimentos telefônicos ativos funcionavam em horário comercial, enquanto os receptivos operavam em horários estendidos. Sessões de psicoterapia e acolhimentos eram flexíveis, adaptando-se à disponibilidade de pacientes e psicólogos, com até 12 sessões de psicoterapia oferecidas para cada colaborador das empresas que atendemos.
LR: Aproximadamente 2.000 vidas foram atendidas pelo projeto, que ainda segue em andamento.
LR: Os principais pontos de aprendizagem foram a necessidade de manter uma equipe técnica especializada em gestão populacional, gestão de crise, psicólogos especialistas em trauma e transtorno de estresse pós-traumático, e trabalho em grupo.
No Brasil, ainda temos poucos psicólogos especializados nessas áreas devido à baixa frequência de desastres naturais comparada à de outros países. Portanto, temos um gap na formação desses profissionais.
LR: Um dos principais desafios foi com a busca ativa, em que psicólogos ligavam para os colaboradores. Notamos que muitas pessoas não atendiam as ligações por medo de golpes, pois estavam sendo orientadas a não atender chamadas de DDDs não locais devido a fraudes relacionadas a benefícios do governo. Conseguimos contornar essa situação adquirindo linhas locais, o que aumentou significativamente a taxa de atendimento.
LR: A importância de ter equipes altamente capacitadas, sempre baseadas em fontes científicas confiáveis, atuando por diferentes canais de atendimento.
O trabalho presencial tem suas limitações, e nosso suporte à distância se mostrou muito eficaz.
Utilizar canais ativos e passivos de atendimento direto, como os Programas de Apoio ao Empregado (PAE), com a diferenciação de ter profissionais especialistas desde o primeiro contato, foi um ganho significativo de experiência e de impacto.