• Pele de peixe é inovação de ponta em cirurgias plásticas

    pele de tilápia UFC
    Pele de tilápia tem sido aplicada para reparar tecidos em cirurgia plástica, na ginecologia, na odontologia e até na medicina veterinária. (Foto: Vicktor Braga/UFC)
    Jose Renato Junior | 22 jul 2022

    Biomateriais não são novidade na ciência e na medicina, mas alguns deles chamam a atenção por serem inusitados. É o caso da pele de tilápia, um dos peixes de água doce mais criados e comercializados no Brasil. Médicos estão utilizando o material que recobre a espécie em cirurgias plásticas para reconstituir dedos de crianças com Síndrome de Apert, que acomete 1 a cada 65 mil nascidos vivos. 

    “O Apert é uma síndrome que, em termos de sinais e sintomas, é bem significativa. São crianças que nascem com algumas estruturas do crânio fechadas, alterações no rosto por causa da pressão intracraniana, todos os ossos das mãos e pés fechados, limitação nos ombros, quadris e membros superiores e inferiores, alterações pulmonares e no sistema nervoso central. Enfim, é uma condição complexa”, explica o cirurgião plástico Cassio Eduardo Raposo do Amaral, vice-presidente do hospital SOBRAPAR Crânio e Face e um dos pesquisadores envolvidos com o uso cirúrgico da pele de tilápia. 

    De acordo com Cassio, a Síndrome de Apert requer um tratamento inicial multiprofissional envolvendo várias especialidades, porque vem acompanhada de problemas sistêmicos no cérebro, coração, rins e vias aéreas. “Normalmente, é possível identificá-la ainda na gestação, porque é uma alteração genética. Além disso, os exames de imagem costumam mostrar dedos das mãos e pés unidos”, diz.

    Thais Miguel do Couto, uma das parceiras de Cassio na pesquisa, comenta que a pele de tilápia é conhecida como um promissor biomaterial no mundo inteiro e que, recentemente, a Agência Espacial dos EUA (NASA) declarou a intenção de levá-la para testes em missões espaciais. 

    “Observando a relevância que o material ganhou nos últimos anos, e a gente tratando crianças com Apert, sabendo que as mãozinhas delas têm feridas dolorosas e que demoram para cicatrizar, veio a ideia de testar essa pele no tratamento”, conta Thais. 

    O principal objetivo da equipe era reduzir o número de curativos pós-operatórios quando se faz a separação dos dedos dessas crianças. Como eles se apresentam colados uns aos outros no nascimento, é preciso separá-los cirurgicamente. E é aí que a pele de tilápia entra: no enxerto entre os dedos separados. 

    “Quando separamos os dedos, fica uma ferida. Antes da pele de tilápia, tirávamos a pele da cabeça ou da barriguinha da própria criança para enxertar no cruento (ferida). Só que muitas vezes essa pele não encontrava um leito bom, porque, ao separar o tendão, fica tudo exposto. O enxerto tradicional é feito assim”, explica Thais. “A pele de tilápia, por sua vez, prepara esse leito e fica lá de forma temporária, por mais ou menos uns 7 dias para ajudar na cicatrização e só então entramos com a pele da própria criança”, explica Thais. 

    A lista de benefícios associados ao tratamento inovador conta com: cicatrização mais rápida, diminuição do número de curativos – são 30 dias com trocas doloridas – e diminuição das dores no período pós-operatório. Considerando que cada paciente com Apert passa por uma média de 5 a 6 cirurgias, os ganhos são enormes. 

    Pai da pesquisa

    Apesar de Cassio e Thais lidarem com o material no centro cirúrgico, quem está à frente da pesquisa com pele de tilápia como biomaterial desde o início, em 2015, é o cirurgião Edmar Maciel Lima Júnior, presidente da ONG Instituto de Apoio ao Queimado no Ceará, que cuida de vítimas de queimaduras gratuitamente.

    “Hoje são 307 colaboradores, distribuídos em 9 estados brasileiros e 9 países. O Instituto de Apoio ao Queimado, nos primeiros 5 anos, foi quem fez toda a parte administrativa da pesquisa, juntamente com a Universidade Federal do Ceará (UFC). E quem financiou inicialmente a pesquisa, há 8 anos, foi a Companhia Energética ENEL”, conta Edmar. 

    Cassio Amaral e Edmar Maciel - pele de tilápia

    Cassio Eduardo Raposo do Amaral e Edmar Maciel Lima Júnior lideram as pesquisas na frente clínica e laboratorial, respectivamente. (Foto: Divulgação)

    Como cirurgião plástico, Edmar, em parceria com Marcelo Borges, cirurgião plástico de Pernambuco, já tinham conhecimento de outras peles usadas ou estudadas para tratar queimaduras humanas, como a de porco e a de rã. 

    “A pele de tilápia veio como alternativa dessa vontade de termos a primeira pele de animal registrada na ANVISA, e também por ser o segundo maior peixe de cativeiro do mundo, só perde para carpas. Por fim, já se sabe que o risco de zoonoses em peixes é menor”.

    Edmar relata que Marcelo tentou viabilizar a pesquisa em Pernambuco e não conseguiu. Encontraram, então, financiamento para os estudos com o biomaterial no Ceará. 

    “Logo de cara, os estudos histológicos mostraram que a pele da tilápia é importantíssima para cicatrização pois tem uma concentração da proteína colágeno tipo 1 maior do que a da pele humana e o dobro da pele do porco. Ela também é altamente resistente à tração e com bom grau de umidade”, detalha.

    Além da aplicação em casos de Síndrome de Apert, há ainda outros 70 projetos em andamento de possíveis usos da pele de tilápia, que vão de odontologia, em lesões de mucosa oral e gengiva, à ginecologia, na reconstrução de cavidades vaginais. Até mesmo a medicina veterinária já se aproveitou dos estudos para aplicar o biomaterial em feridas animais.

    “Há duas maneiras de esterilizar esse material. Uma é no glicerol, com o material conservado na geladeira de 2 ºC a 4 ºC. A outra é a liofilizada, em que a pele de tilápia é embalada a vácuo e irradiada. Essa fica na prateleira, não precisa de geladeira, e com isso o transporte dela para outros estados e países é mais fácil e até 10% mais barato”, descreve Edmar.

    Para garantir a eliminação de microrganismos com a irradiação, é preciso encaminhar o material para São Paulo, onde o Instituto de Pesquisas Energéticas Nuclear (IPE) realiza o procedimento. Há 4 anos, quem fornece a pele é a empresa BOMAR Pescados, que fica em Itarema, no interior do Ceará, a 257 km de Fortaleza. 

    “Apesar de ter produtores no mundo todo nos oferecendo fornecimento, optamos pela BOMAR porque visitamos a empresa algumas vezes e a qualidade que eles têm na manipulação, nos cuidados com higienização e na remoção da pele sem prejudicar a espessura, que é onde está o colágeno, é muito boa. Sempre que precisamos, eles mandam as peles congeladas”, conta Edmar.

    Resultados

    Centenas de pacientes já foram beneficiados pela pesquisa: na ginecologia, mais de 100; na odontologia em torno de 40, na Síndrome de Apert, 11 crianças; e, na veterinária, mais de 100 cães em tratamentos de lesão de córnea e de reconstrução de hérnia. 

    O grupo de pesquisa já soma mais de 19 prêmios, além de 28 publicações em revistas nacionais e internacionais, e estudos em parceria com a Fiocruz, Instituto Butantan e NASA. 

    O estudo já foi citado em seriados de TV internacionais, como Grey ‘s Anatomy e The Good Doctor, e rendeu 760 matérias em 62 países diferentes. Na vida real, a pele de tilápia já foi aplicada para cuidar de pessoas queimadas em incêndios na Califórnia, no Líbano, no Pantanal e em Uberaba (MG).

    Confira Também: