Comer pequenas porções de alimento (o popular “beliscar”) o dia inteiro, mesmo sem fome, pode ser indício de um comportamento alimentar conhecido como grazing. Ainda pouco estudado no Brasil, o hábito foi tema de doutorado da psicóloga Marília Consolini Teodoro, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto (FFCLRP-USP).
De acordo com a especialista, até o início de sua pesquisa, em 2018, não havia registros de outros estudos sobre este recorte de comportamento alimentar no país.
O hábito corriqueiro e aparentemente inofensivo, pode levantar questões complexas, uma vez que o grazing funciona como mecanismo de regulação emocional para o alívio de ansiedade, por exemplo.
Aliás, o estudo de Marília, realizado com aproximadamente 700 pessoas no início da pandemia de Covid-19, aponta que stress e ansiedade estão intimamente ligados ao grazing – e que esses sintomas têm aumentado globalmente.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), casos de ansiedade e de depressão cresceram mais de 25% desde o começo da pandemia. As mulheres foram mais afetadas que os homens, especialmente na faixa de 20 a 24 anos.
O deterioramento da saúde mental durante esse período também foi constatada em um estudo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e publicado pela revista The Lancet. O artigo mostra que os casos de depressão aumentaram 90% e o número de pessoas que relataram sintomas como crise de ansiedade e estresse agudo mais que dobrou entre março e abril de 2020.
“O grazing pode indicar o desenvolvimento de psicopatologias manifestadas no comportamento alimentar”, explica a pesquisadora.
O estudo liderado por ela investigou duas amostras: uma comunitária, com a participação de 542 pessoas, em que a maioria apresentava índice de massa corporal (IMC) dentro da normalidade, e uma amostra clínica de 281 pessoas com algum nível de obesidade.
A manifestação do grazing foi separada em dois grupos:
Repetitivo: neste grupo, comer pequenas porções de comida ao longo do dia ocorre de forma contínua, porém leve e pouco associada à perda de controle sobre o hábito;
Compulsivo: aqui, o hábito de “beliscar” está associado à perda de controle e a sintomas psicológicos.
“Nas duas amostras, os níveis de grazing compulsivo foram mais altos entre as mulheres. Por ser um comportamento automático e natural, a percepção sobre a existência dele não é óbvia”, avalia a pesquisadora.
Marília ressalta a importância do trabalho preventivo de regulação emocional para reconhecer a manifestação do grazing. Uma das abordagens mais indicadas para isso é a terapia cognitivo-comportamental (TCC), que, segundo Marília, costuma ser eficaz para tratar transtornos alimentares.
“Não estamos acostumados a prestar atenção no que pensamos ou fazemos. Um dos pontos que trabalhamos na TCC é o registro dos pensamentos, das ações e dos comportamentos. Ao nos atentarmos para isso, passamos a ter algum controle sobre comportamentos disfuncionais”, afirma a psicóloga.
De acordo com Marília, na TCC, o profissional que conduz a terapia mostra, ao longo das sessões, que o que influencia o paciente não são diretamente os acontecimentos e situações, mas como ele interpreta essas circunstâncias.
Gabriela Sintra Rios, mestre em Psicologia Experimental pela USP e pesquisadora do Instituto de Saúde de Saúde ISAUDE/SP, comenta que “com a TCC, o paciente participa de uma reestruturação cognitiva, que o ajuda a organizar os pensamentos, e a reformular sistemas e crenças disfuncionais que, ao longo do tempo, se tornam rígidos. O objetivo é trabalhar pensamentos que possam repercutir de forma negativa nos comportamentos e nas emoções do paciente.”
Marília explica que entre as diferenças do grazing para a compulsão alimentar estão a quantidade de alimento ingerido e o período em que o comportamento ocorre.
“Na compulsão, o indivíduo come muito de uma vez para aliviar um momento de ansiedade. No grazing, a quantidade é menor do que uma refeição completa e feita continuamente, de forma repetitiva e não planejada.”
A pesquisadora também aponta que o problema não é o petiscar em si, mas o quanto a pessoa é refém do comportamento.
“Quando o grazing ocorre como forma de regulação emocional, o stress é um gatilho relevante.”
Pesquisas realizadas globalmente sobre grazing mostram que o comportamento é observado com frequência em pacientes submetidos a cirurgias bariátricas – em muitos destes casos, o sobrepeso volta a ocorrer após o procedimento.
“Por ser mais discreto e menos estudado do que a compulsão alimentar, o grazing nem sempre é visto como prejudicial”, finaliza a pesquisadora.