Cerca de 56% da população brasileira se identifica como negra, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Isso representa, é claro, mais da metade. Na outra metade, há ainda pessoas que também não são brancas, como asiáticos, indígenas e outras etnias.
O Brasil é, aliás, o país com a maior população negra fora da África, de acordo com informações do Institute for Cultural Diplomacy sobre a diáspora africana no mundo.
Diante disso tudo, era de se esperar que a dermatologia brasileira fosse referência no estudo da pele negra. Acontece que não é. A expectativa difere muito da realidade.
Katleen da Cruz Conceição é o que se pode chamar de pioneira na área no país. Se hoje enfim caminhamos rumo a novas técnicas e tecnologias, há 20 anos, quando ela iniciou sua trajetória como médica dermatologista, falar sobre pele negra era quase revolucionário.
“Eu brinco que me descobri negra duas vezes: quando nasci e quando entrei na dermatologia”, conta.
“E 20 anos atrás não conhecia dermatologista negro, a referência era meu pai, também dermatologista e também negro – mas ele não era especialista em pele negra.”
Katleen conta que não se encontrava representada. “Eu ia aos congressos e não via outros negros. Na medicina já não se tem negros; na dermatologia, então, não tinha mesmo. Até quando você vai estudar, todos os livros se baseiam em pessoas brancas.”
UMA ESPECIALIZAÇÃO DECIDIDA PELO ACASO
Ser especialista em pele negra não estava, no entanto, nos planos de Katleen desde que ela se formou. Foi uma conjunção de fatores (ou talvez o destino?) que a fez seguir esse caminho.
“Fui médica no exército logo depois que acabei a minha pós em dermatologia. Depois, fiz uma outra pós, em medicina estética. Quando virei professora nessa pós-graduação, me tornei responsável por um ambulatório de peeling”, ela relembra.
“Nesse ambulatório, fui procurada por pessoas negras que relataram terem sido encaminhadas a mim porque muitos médicos partiam do princípio que eu deveria saber de pele negra só por ser negra”, afirma.
“E então passei a me questionar. Nunca tinha tido essa preocupação de me estudar, me olhar sob essa ótica.”
Foi a partir desse estalo que Katleen decidiu embarcar para os Estados Unidos, país que não só já tratava do assunto com mais propriedade como possuía uma sociedade específica para isso: a Skin of Color Society, nascida em 2004 para estudar não só peles negras, mas qualquer tipo de pele pigmentada.
“Não demorei muito para me associar a ela e trazer um pouco do conhecimento adquirido por lá aqui para o Brasil”, afirma.
“A partir daí, comecei a palestrar e iniciei essa jornada de especialista. Virei professora também no Hospital de Bonsucesso [no Rio de Janeiro], onde fazia trabalho voluntário com pessoas que não teriam condições de ter acesso a tratamentos até hoje.”
Katleen também é preceptora do Ambulatório de Pele Negra na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro há sete anos, além de mentora há dois da Skin of Color Society, onde dá orientação online de dermatologia para todo o mundo.
“Eu tenho 50 anos e hoje vejo dermatologistas de 30, 32 anos, que dizem que eu fui referência para eles, por causa dessa questão de representatividade”, diz.
“Quando você vê um dermatologista negro, você quer estudar isso. Porque não basta só ser negro, você tem que estudar, ter artigos publicados, se dedicar a essa área como se dedicaria a qualquer outra. Mas acho que o cenário é, sim, positivo e está mudando”, pontua.
UM RETRATO DA DERMATOLOGIA NO PAÍS
Segundo o estudo da Demografia Médica no Brasil, atualmente existem 8.317 médicos especializados em dermatologia no país, sendo que 76,9% são mulheres.
No contexto nacional, a região Sudeste concentra a maioria dos especialistas, com 58,7% do total, seguido da região Sul (15,8%), Nordeste (14,1%), Centro-Oeste (7,8%) e Norte (3,6%).
Apesar da baixa representatividade histórica de dermatologistas negros, as tecnologias avançam em território nacional.
“Nós, brasileiros dermatologistas, somos referência mundial – tanto que há vários médicos que são excelentes em preenchimento e dão palestras lá fora”, diz Katleen.
“Até porque, por aqui, tratamos todos os tipos de pele e suas tonalidades e todo tipo de classe social. Isso torna o nosso conhecimento mais vasto.”
A preocupação com a diversidade e acessibilidade é real. A Sociedade Brasileira de Dermatologia, principal órgão regulador da especialidade, oferece a toda população e em todos os estados consultas e tratamentos a preços populares ou até mesmo gratuitos.
Isso contribui não só para reduzir a desigualdade e melhorar o acesso à saúde, como também para aumentar ainda mais o conhecimento dos médicos que se deparam com todo tipo de ocorrência.
“Quando você vai pra fora, vê que a dermatologia é muito elitizada. A gente acha que aqui é, mas lá é muito mais, porque não existe essa cultura ambulatorial. Aqui no Brasil você tem muito acesso público”, conta a especialista.
TECNOLOGIAS ESPECÍFICAS PARA PELES NEGRAS
Em relação às novas tecnologias, nosso país também tem motivos para se orgulhar.
“Trabalho em uma clínica que é referência no Brasil, o grupo Paula Bellotti. Somos pioneiros em trazer laser específico para pele negra, temos esse setor há mais ou menos 12 anos”, afirma a médica.
“Temos ultrassom microfocado, laser picosegundos – que é um laser de comprimento de onda seguro para pele negra e capaz de tratar tatuagens, pigmentações mais profundas, cicatriz, acnes e estrias com segurança”, explica.
“Há também o microagulhamento robótico, equipado com 65 agulhas de ouro para tratar principalmente alopecias, muito comuns na pele negra, cicatriz, estria, melasma.”
Katleen menciona ainda o laser híbrido. “Há dois comprimento de onda de laser para atuar tanto na pele branca quanto na pele negra pigmentada, no pêlo mais fino ou grosso, mais claro ou mais escuro, de forma praticamente indolor”, continua.
“Por fim, há também o laser fracionado não-ablativo e o laser holográfico fracionado, que tratam de cicatrizes, estrias e olheiras, entre outras inovações.”
Mais do que somente inovação, essas tecnologias resgatam um valor social e simbólico muito importante: o de que a pele negra importa e precisa de olhares específicos para ela.
“Isso mora até nas questões mais simples. Quando comecei minha carreira, não existia protetor solar para pele negra. Fui a única consultora de muitos filtros que estão aí no mercado. A pele negra mancha com mais facilidade e a utilização do filtro com cor ajuda a resolver isso”, diz.
Para ela, as patologias na pele negra acabam afetando muito a autoestima de um indivíduo que já é marcado por outras questões. Assim, a dermatologia pode funcionar como um resgate dessa estima que se perdeu.
Em sua prática, Katleen presa por práticas não-invasivas e que não irão mudar o paciente como um todo, somente acessar sua melhor versão.
“Quando eu mudo sua autoestima para melhor, eu faço você começar a questionar uma relação tóxica ou aquilo que você não deveria aceitar.”
A EXPERIÊNCIA DA NEGRITUDE NUM PAÍS RACISTA
Por ser tão especializada e tão boa no que faz, Katleen acabou se tornando referência nacional no assunto – e não só academicamente falando.
Ultrapassando as barreiras da sala de aula, ela tornou-se a queridinha de famosos como Lázaro Ramos e Preta Gil e coleciona mais de 200 mil seguidores no Instagram. Mas o que isso muda em sua experiência enquanto mulher negra?
“Ser negro no Brasil é saber que você sempre vai passar por dificuldade. Não é porque eu sou uma médica reconhecida que deixei de ser negra”, afirma.
“Então eu não parto do princípio que está tudo bem: eu penso na minha representatividade como uma pessoa que teve alguns privilégios, como ter estudado em colégios particulares, ter tido pai médico, ter morado na zona sul”, diz.
“Mas eu não me vejo diferente das pessoas que estão batalhando. Se eu quiser sair não tão arrumada, ou se eu ouvir algum barulho na rua e sair correndo, eu posso ser o alvo dessa violência que é o racismo”, ela continua.
“Quando estou parada numa blitz, eu já acendo as luzes e fico tensa, porque ando em um carro que não é barato e sei o que eles vão pensar.”
É fato que ainda é preciso que haja muitas e muitas Katleens para que a realidade mude de verdade, como um todo. Mas é preciso estar atento aos pequenos atos, como a educação em casa.
“Sempre fui muito comunicativa, sempre frequentei lugares de elite e me envolvia bem. Mas quando entrei na dermatologia não fui tão acolhida”, revela.
“Meu pai, no entanto, sempre me disse que o lugar era meu, e que eu seria a primeira – e que tudo bem com isso. Ele sempre me deu tanta autoestima que eu até demorava a perceber os racismos do cotidiano de uma prática médica. E, quando percebia, eu era muito agressiva. Não sei se facilitei meu caminho com isso, mas reagia porque nunca me senti menor do que ninguém.”
CUIDADOS ESPECÍFICOS PARA A PELE NEGRA