Apenas uma semana após a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar a pandemia de Covid-19, o Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual (Iamspe) abriu o primeiro pronto-atendimento exclusivo para tratar infecções respiratórias agudas com foco no novo coronavírus.
O espaço, que recebeu o nome de Gripário e fica localizado na Vila Clementino, em São Paulo, foi idealizado para garantir a rápida segregação dos casos de risco da doença, visando diminuir as chances de contaminação entre os demais pacientes que frequentam o Hospital do Servidor Público Estadual (HSPE).
Por lá, são atendidos servidores e dependentes que apresentam sintomas gripais, como febre, tosse seca, coriza, espirro e dificuldade para respirar. Ao chegar ao Gripário, os pacientes passam por uma classificação de risco e, na sequência, por uma consulta individualizada.
Nos casos mais leves, a pessoa recebe orientação e prescrição de medicação e, nos graves, é direcionada para internação com a equipe médica de Moléstias Infecciosas (MI) da unidade.
Desde que foi inaugurado, o Gripário já atendeu mais de 65 mil pacientes – o pico aconteceu em janeiro deste ano, quando foram realizados 6 mil atendimentos.
Especialista em medicina intensiva, cardiologia, clínica médica e medicina de urgência e de emergência, Firmino Haag é médico-chefe do pronto-socorro do HSPE. Com 398 trabalhos científicos publicados e apresentados em 64 congressos nacionais e internacionais, ele viveu a rotina do Gripário desde o começo.
Assim como a infectologista Andrea Almeida – que, assim que o vírus Sars-Cov-2 chegou ao país, criou com um colega fisiatra, André Sugawara, o Comitê de Crise Covid-19 do Hospital do Servidor Público Estadual, do qual ela tornou-se coordenadora. Do Comitê saíram decisões e protocolos desde que o paciente chega ao primeiro atendimento até quais medicações utilizar em seu tratamento.
Em conversa com Future Health, Haag e Andrea contam como é a rotina no Gripário, os aprendizados da pandemia e as expectativas futuras, agora que já se fala da possibilidade de a Covid-19 se tornar uma doença endêmica.
O Gripário foi criado apenas por causa da pandemia de Covid-19 ou já era algo que estava nos planos da instituição?
Andrea Almeida – O hospital estava reabilitando a área onde agora fica o Gripário, que era uma unidade antiga de pronto-atendimento. Em 2020, com a pandemia, a administração do Iamspe conseguiu acelerar o projeto. Sempre tivemos aqui um fluxo e uma rotina para atendimento de casos de doenças respiratórias agudas e de isolamento. Mas, antes, isso acontecia em um único espaço, compartilhado com todos os pacientes do pronto-socorro geral. Com a inauguração do Gripário, pudemos finalmente fazer a separação.
Como se dá o atendimento no local?
Firmino Haag – São atendidos no Gripário pacientes que apresentam quadros ou sintomas de síndromes gripais, como dor de cabeça, dor de garganta, falta de ar ou febre. Quando o paciente chega, um funcionário administrativo faz um interrogatório, um questionário simplificado. Esse paciente, então, entra no setor.
Lá, passa por uma classificação de risco, feita por enfermeiro, e aí é dada a prioridade em relação ao atendimento.
Depois, ele é atendido pelo médico, que faz a avaliação inicial. Nos casos mais leves, o paciente recebe orientação e prescrição de medicação e, nos mais delicados, mais críticos, é direcionado para outro setor do Gripário para receber as medicações e o atendimento necessário, realizar os exames pertinentes e, então, é decidido se ficará internado ou não.
Do início da operação para cá, quais mudanças vocês perceberam em relação ao atendimento realizado?
Andrea – Ao longo do tempo, nosso protocolo foi mudando, as deliberações do pronto-socorro foram amadurecendo. No trabalho do dia a dia, fomos aprendendo sobre o vírus, a doença, entendendo quem precisava ser entubado, quais tratamentos devíamos seguir…
Mas um ponto importante de destacar é que desde o início determinamos um fluxo de atendimento para que o paciente ficasse o menor tempo possível no Gripário.
O fluxo ideal é a pessoa chegar e já ser atendida. Se tem critério de gravidade, a equipe de intubação chega e já intuba, depois faz tomografia de tórax e vai direto para a UTI, a depender da disponibilidade de leito no hospital. No Gripário, só fica paciente internado quando não há disponibilidade de leito na UTI ou nas enfermarias.
Haag – Começamos a operar no 18 de março de 2020 na perspectiva de atender pacientes com quadro de síndromes gripais e respiratórias. Várias mudanças aconteceram ao longo dessa trajetória de quase dois anos, baseadas no que recebíamos de informação. No geral, tivemos três grandes momentos no Gripário até agora e que precisaram de ajustes. O primeiro foi em 2020. Naquela época, fomos pegos de surpresa. Não tínhamos muitas informações de como fazer a assistência do paciente com Covid-19. Mas, após várias reuniões com o Comitê de Crises, conseguimos ir superando e, no fim do ano, já estávamos mais tranquilos.
O segundo momento foi em 2021. Em março e abril passamos por um novo pico de Covid-19 e, por causa disso, tivemos até de aumentar o espaço físico do Gripário.
Aos poucos fomos ajustando os processos e nos saímos bem. O terceiro momento foi em janeiro de 2022, com mais um pico da doença, só que dessa vez com casos menos graves, mas com volume de atendimento bastante significativo e que também exigiu mudanças e ajustes. E o que a Andrea colocou, de agilizar os atendimentos, realmente sempre foi a nossa prioridade, visando a segurança de todos.
Quando o Gripário foi inaugurado, qual era a capacidade? E como tem sido a demanda desde então?
Andrea – Essa é uma pergunta complicada, pois o nosso PS é de porta aberta. Chegam mil pessoas, atendemos mil. Chegam 100, atendemos 100.
Haag – O nosso pico maior foi em janeiro deste ano. Realizamos 6,5 mil atendimentos. Mas, desde a inauguração, já ultrapassamos 65 mil atendimentos. Hoje, estamos com cinco leitos de internação, dez poltronas de observação e um leito de estabilização. Mas já chegamos a ter 30 leitos de internação, 20 poltronas de observação e dez leitos para pacientes críticos. O Gripário tem uma característica física que permite dilatar ou encolher o seu espaço, e todas as vezes que foi necessário nós expandimos para absorver a demanda.
O que aprenderam com o Gripário em quase dois anos de pandemia?
Andrea – Em relação à Covid-19, acho que a coisa mais importante que aprendemos é a não fazer previsões. Essa é uma doença que a gente ainda está conhecendo.
Qualquer pessoa que fez previsões de como o coronavírus iria evoluir durante estes dois anos certamente errou.
Também aprendemos a nos adaptar à situação que aparece no momento, a não nos desesperar e que é preciso ter um pé sempre atrás, não baixar a guarda, fazer planejamento futuro e manter as equipes alertas.
Haag – A Covid-19 foi uma grande surpresa, mas certamente nos proporcionou um grande aprendizado. Estes últimos anos foram extremamente desafiadores e de muito amadurecimento profissional. Eu, particularmente, me sinto grato por ter participado de tudo isso, ainda mais em uma instituição como esta, que nos dá todo o suporte e orientações para que possamos atender os pacientes da melhor maneira possível.
E indo além da Covid-19, o que fica de lição?
Andrea – A de que o hospital mudou completamente e não é lugar para ir passear. As pessoas precisam se conscientizar disso. Hoje, as principais reclamações que recebemos são relacionadas à visita e acompanhamento de pacientes. Mas é preciso todo cuidado do mundo com isso.
Para dar um exemplo: eu neguei o acompanhante de uma senhora que estava internada porque ele era um senhor de 80 de anos, com Alzheimer e que precisava do auxílio de uma cuidadora.
O acompanhamento tem de ser feito por uma pessoa saudável, que possa auxiliar o paciente durante a internação e que cumpra as regras do local, como a do uso de máscara na atualidade. É necessário ter muita responsabilidade em liberar a presença de acompanhantes e visitantes no hospital.
Haag – A situação do acompanhante é realmente bem importante. Enfrentamos várias situações de dificuldade em relação à orientação dos familiares no Gripário e no hospital como um todo. Neste caso específico da Covid-19, se nós estamos lidando com uma doença infectocontagiosa altamente transmissível, é fundamental que as famílias entendam que não podem acompanhar e nem visitar os pacientes.
Em 2021, junto com a pandemia surgiu uma epidemia de gripe. Como vocês lidaram com a situação?
Andrea – Foi um surto fora de época. Dezembro não é uma época de sazonalidade, e a gripe é uma doença bem marcada, acontece no inverno. Esse surto provavelmente foi fruto de uma baixa cobertura vacinal em 2020 e em 2021.
A parte boa é que, na triagem, fizemos testes rápidos e conseguimos separar quem tinha Covid e quem tinha influenza.
Foi um período difícil, de aumento nos atendimentos e, inclusive, tivemos vários pacientes diagnosticados com as duas infecções ao mesmo tempo, mas a gripe foi controlada rapidamente.
Haag – A partir do dia 10 de dezembro começamos a ter percepção de que estava tendo um aumento exponencial dos casos de gripe. Esse surto associado à Covid realmente foi muito expressivo aqui para nós. Mas um dos pontos positivos foi justamente realizar o antígeno para fazer o diagnóstico diferencial e, a partir daí, determinar o atendimento personalizado para cada caso.
Qual o impacto da vacinação que vocês puderam perceber?
Andrea – Sou fã incondicional de vacina. As vacinas mudaram a história da humanidade, e fico muito triste quando vejo fake news ou encontro pessoas que não entendem a sua importância. A vacinação contra a Covid-19 tem feito toda a diferença e acredito que não controlamos melhor a pandemia porque a aplicação não tem ocorrido de forma igualitária no mundo todo.
Se a população mundial se imunizasse, e com o programa completo, que são as duas doses iniciais e mais a dose de reforço, diminuiriam as chances de aparecer variantes de preocupação.
Se a gente conseguir fazer a vacinação de forma mais globalizada, temos mais chance de controlar a doença e voltar ao nosso normal. De todo modo, desde que a vacinação foi iniciada percebemos queda no número de casos graves e mortes, e essa é a meta das vacinas. Em nenhum momento foi dito que a vacina contra a Covid-19 protege 100%. O objetivo principal é evitar as internações, os casos graves e o óbito, e o secundário é diminuir os casos leves e moderados e a transmissão.
Para a OMS, a expectativa é que a Covid-19 caminhe para tornar-se endêmica. Ela e a gripe devem conviver?
Andrea – Já convivemos com outros quatro tipos de coronavírus, que há centenas de anos podem ter feito exatamente o mesmo caminho que o Sars-Cov-2 está fazendo agora. Eu acredito que esse vírus não vai mais embora. Ele tem alta transmissibilidade, se adapta bem, encontra pessoas suscetíveis…
Ainda preenchemos critérios de pandemia, de acordo com a OMS, ou seja, o vírus está presente nos 5 continentes e segue sendo altamente transmissível.
Mas a partir do momento em que desaparecer de algum continente e as taxas de transmissão caírem, passaremos para a definição de endemia. Quando isso acontecer, deveremos ter pequenos surtos de Covid-19, especialmente em hospitais, asilos, creches, escolas, enfim, lugares fechados e onde fica muita gente. Então, é muito provável que Covid-19, gripe e outras doenças respiratórias convivam.
O que muda na prática se a Covid-19 virar endêmica? Será possível voltar exatamente ao que era no pós-pandemia?
Andrea – Vamos ter de conviver com o coronavírus, e essa convivência precisará ser harmoniosa e pacífica. O que quero dizer com isso? Que não adianta ficar estressado por ter que usar máscara e não poder sair. Quando a doença for endêmica e a contrairmos, teremos de seguir tomando essas medidas individuais.
Se uma pessoa apresentar sintomas gripais, ela deverá se isolar e usar máscara. Isso tem que ficar enraizado na população.
Já as pessoas dos grupos de risco têm de se identificar como de risco e pegar orientações com seus médicos para poderem se cuidar. Essas pessoas têm de se proteger, então devem sempre se vacinar, evitar exposições e lugares onde há aglomeração e usar máscara, inclusive quando receberem amigos e parentes. Vemos muito isso no Japão. O oriental, de modo geral, tem o hábito de usar máscara e devemos aprender com eles. E outra coisa, eu confio muito na comunidade científica. Tenho certeza de que teremos vacinas e remédios mais eficientes. Acredito que vamos viver tempos melhores.
Haag – A vida precisa voltar ao normal, mas a um normal racional, com responsabilidade. O costume que os orientais têm de usar máscara quando estão doentes realmente deve ser seguido pelo brasileiro. A população deve se autoproteger quando estiver infectada com algum vírus, e, com isso, conseguiremos ter melhor controle não só da Covid-19, mas também de outras doenças respiratórias.
Caso ocorram apenas surtos ocasionais de coronavírus no futuro, o Gripário deve continuar funcionando?
Haag – Quando os casos de Covid-19 reduzirem exponencialmente, vamos desabilitar parcialmente o Gripário para iniciar outro projeto que temos aqui, que é o Pronto-Socorro Fila Zero. Mas preservaremos um segmento específico para atendimento de síndromes gripais e doenças infectocontagiosas. Esse é o grande legado da pandemia para a nossa instituição.
Para finalizar, vocês, que desde o início da pandemia estão na atuando na linha de frente da covid-19, chegaram a pegar a doença?
Haag – Eu peguei logo depois que o primeiro caso foi notificado no Brasil. Foi em fevereiro de 2020. Não sabia que era Covid-19. Descobri só depois quando fiz o teste de antígeno. Tive sintomas, mas sobrevivi.
Andrea – Eu não peguei, graças a Deus.