• “A bioengenharia genética vai conseguir curar o câncer”, afirma, aos 88, a cirurgiã Angelita Habr-Gama

    A cirurgiã Angelita Habr-Gama
    Jose Renato Junior | 19 jan 2022

    Angelita Habr-Gama foi a primeira de muitas. Aos 88 anos, a cirurgiã celebra os nãos que transformou em sins, as portas que com muita coragem e persistência abriu e que fizeram dela referência internacional em cirurgia de intestino.

    Nascida na Ilha de Marajó, Angelita não entrou na medicina por vocação. Mas ao olhar para trás, não imagina sua vida longe do centro cirúrgico, de seus pacientes e de seus alunos. 

    Apaixonada pela universidade, ela foi professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), onde se formou em 1957, e onde criou a disciplina de Coloproctologia enquanto docente, sendo a primeira a chefiar os departamentos de Cirurgia e Gastroenterologia da FMUSP.

    Angelita é uma defensora da busca pelo conhecimento, e com esse entusiasmo construiu uma carreira acadêmica profícua: publicou mais de 200 capítulos em livros e 300 artigos em periódicos científicos, apresentou 2400 trabalhos em congressos e organizou mais de 100 eventos científicos. 

    Ser a primeira mulher residente de cirurgia do Hospital das Clínicas foi só o começo. A cirurgiã fundou e é presidente da Associação Brasileira de Prevenção ao Câncer no Intestino (Abrapreci). 

    Também já presidiu a International Society of University Colon and Rectal Surgeons, e as Sociedades Brasileira e Latinoamericana de Coloproctologia. Além disso, foi a primeira mulher a se tornar Membro Honorário da American Surgical Association e a primeira médica da América Latina a integrar o grupo de 17 Membros Honorários da European Surgical Association. 

    Por seu pioneirismo e dedicação à medicina, Angelita já conquistou mais de 50 prêmios nacionais e internacionais e foi reconhecida pela revista Forbes como uma das mulheres mais influentes do país. 

    Em 2020, tornou-se membro da Academia Nacional de Medicina. No mesmo ano, sua vida foi transformada em livro pelo jornalista e escritor Ignácio de Loyola Brandão.

    Com uma agenda atribulada entre atendimentos e operações, Angelita conversou com Future Health sobre sua carreira, a necessidade de não aceitar os nãos que surgem na vida e os 50 dias que ficou na UTI por Covid em 2020. Confira:

    COMO UNIR A MEDICINA À PAIXÃO PELO ENSINO

    “Vim da Ilha de Marajó com sete anos para São Paulo por uma coincidência, porque um dos meus irmãos morreu e meus pais, que já tinham seis filhos na época, foram muito sábios. Eles eram libaneses, vieram da guerra, e pensaram que, se um dos filhos morreu, os demais também poderiam morrer de apendicite aguda. Assim, viemos todos. E foi uma mudança extraordinária. 

    A morte do meu irmão foi uma infelicidade, mas a mudança foi um momento feliz para a família toda. 

    Sempre estudei em escolas públicas e, modéstia à parte, eu era muito esperta, estudiosa, me saía muito bem nos estudos, me interessava por diversos assuntos. Na escola Caetano de Campos, várias amigas iam fazer medicina. A gente jogava vôlei juntas, fomos campeãs do estado. E me influenciei por elas. Não tinha muita ideia do que a vida guardava pra mim. Não tinha nenhum médico na minha família. Minhas duas irmãs mais velhas estavam fazendo o chamado Normal para serem professoras primárias, e na época era o que todas as moças faziam. 

    Meu pai achava que eu também devia ser professora. Mas eu insisti e prestar vestibular para medicina foi o primeiro ‘não’ violento que eu dei à minha família – foi um ‘não’ glorioso. 

    Quando eu fui aprovada em oitavo lugar, meus pais ficaram superfelizes. Foi aí que eles se deram conta do que seria ter uma filha médica. Mas eu sempre gostei muito de ensinar. Minha família toda era de professores no Líbano, eu tenho sangue para ensinar. E na medicina eu encontrei dois aspectos muito importantes: além da função do médico, que é recuperar a saúde, promover a cura, evitar a dor, a medicina propicia que o médico ensine. Então, já dentro da faculdade, a gente começa a ensinar quem vem atrás. Quando a gente faz concurso para residência, ensina o interno – e vamos sempre ensinando. Eu consegui unir o procedimento médico e o ensino, e me realizei completamente.” 

    A RELAÇÃO ENTRE UM CURSO DE CORTE E COSTURA E A CIRURGIA

    “Tudo na vida é questão de coincidência. Eu não tinha a menor ideia de fazer cirurgia na faculdade. No internato, a gente faz rodízio pelas especialidades. Quando eu passei pela cirurgia, um aluno mais velho me disse que eu levava jeito. Me pediu pra suturar e eu disse que só sabia costurar roupa.

    Tinha feito um curso de corte e costura e costurava minhas próprias roupas, mas eu suturei uma barriga e ele me disse que eu levava jeito. 

    Até então, eu queria fazer cardiologia, porque gostava muito do meu professor. Tanto que meu primeiro trabalho científico foi na cardiologia. Quando resolvi fazer a residência em cirurgia foi uma guerra, porque só haviam oito vagas. E naquela época a cirurgia estava em pleno apogeu, todo mundo queria fazer. 

    Lembro que o chefe da residência de cirurgia me disse: ‘É bobagem você tomar a vaga de um rapaz. Desista desse concurso, porque medicina não é profissão de mulher, cirurgia menos ainda’. 

    Ele falou ainda: ‘Você vai enfrentar um monte de homem no centro cirúrgico, é um ambiente muito masculino. Você é ótima, por que você não vai pra clínica?’. Eu não falei nada, fiz o concurso e passei em primeiro lugar. Pude até escolher onde fazer o meu treinamento em clínica cirúrgica, e fiz na Faculdade de Medicina do Hospital das Clínicas da USP com o Alípio Corrêa Neto, que era um homem extraordinário.” 

    UM HOSPITAL PARA HOMENS?

    “As coincidências da vida são enormes e, quando estava no último ano da residência, fui a um congresso internacional de coloproctologia e lá encontrei médicos que trabalhavam no único hospital do mundo só para doenças intestinais, o St Mark’s Hospital, na Inglaterra. Me apresentei, alguns começaram a dar aula aqui, nós ficamos conhecidos. 

    Aí eu resolvi fazer coloproctologia, porque eu fiquei tão entusiasmada! Eles eram capa de livro, eles eram os autores que eu estudava. 

    Então pedi uma bolsa da Capes e do British Council, e com o aporte econômico dessa bolsa me inscrevi para ir para o St Mark’s. Eles me responderam por carta: ‘Nós conhecemos você, achamos que você é uma jovem bastante promissora, mas não aceitamos mulheres, it’s a hospital for men’. 

    Eu não aceitei, nada é proibido para mulheres, por que um hospital para homens? Vocês podem ter uma primeira mulher. 

    Passei dois anos insistindo, escrevendo cartas até que eles me aceitaram. Eu fui a primeira mulher a estagiar no St Mark’s Hospital. Foi incrível. Eu voltei súper cheia de mim, sabia tudo de colo, reto, ânus, doenças inflamatórias. Aprendi muito lá – e não só a operar, aprendi a escrever trabalho científico, a conviver, compartilhar com os demais. Porque a escola de cirurgia brasileira é fantástica, os cirurgiões brasileiros são ótimos, têm um nível muito elevado. 

    Quem quer aprender a operar, aprende no Brasil. A gente viaja para ampliar conhecimentos, a maneira de ver as coisas, de transmitir, conviver com outro mundo, outras línguas. 

    Na volta, fui contratada pelo Hospital das Clínicas, e desenvolvi minha carreira na Faculdade de Medicina. Nasci ali e ali eu fiquei. Eu amo a Faculdade de Medicina, lá é a minha casa. Eu desfrutei dela em tudo o que ela podia me dar. No estudo, no esporte, nas relações. Joguei voleibol, corria, fazia atletismo, costurei as fantasias do show anual da faculdade. Participei de tudo, foi lá que eu comecei a ensinar. Sempre fui prestigiada pelos acadêmicos. 

    Tem um grupo de acadêmicos chamado Gametas que nos ajudam nas operações. Hoje eu operei a manhã inteira e os jovens acadêmicos que instrumentam pra gente.

    Aliás, eu acho que todo mundo deve conviver com jovens. À medida que a gente vai envelhecendo, é indispensável esse convívio. Eles te mantêm entusiasmado, porque eles estudam, dialogam, perguntam. Não tem aquela inibição de perguntar para alguém mais velho. Tem respeito, mas é de igual pra igual. Conviver com jovens ajuda a manter a nossa própria juventude, é maravilhoso.” 

    “NÃO” NÃO É RESPOSTA

    “As mulheres recebem muitos nãos. Se esse ‘não’ não for racional, você não pode aceitar, tem que insistir. ‘Você não pode fazer isso, porque não é profissão de mulher’. Mas o que é profissão de mulher? Não existe isso. A profissão de mulher é aquilo que ela quer fazer. Não existe nada que seja só para mulher ou só para homem. O espaço tem que ser igualitário para todos. Se chega lá ou aqui de acordo com o seu temperamento, com o seu desejo. As mulheres não podem se importar com o que os outros pensam, dar valor à opinião do outro. Precisam acreditar mais nelas mesmas.” 

    “HOJE EU SOU UMA RESSUSCITADA”

    “No dia 28 de fevereiro de 2020, participei de uma conferência no Congresso Internacional de Coloproctologia em Jerusalém. Estava cheio de gente do mundo inteiro, muitos asiáticos. Passamos uma semana convivendo de perto, e não se falava de Covid. Na volta da viagem, no dia 8 de março, foi o lançamento da minha biografia. Eu estava me sentindo cansada e foi estranho, porque não costumo me cansar com essas coisas, já que me deu tanto prazer lançar o livro. 

    Senti uma certa febrícula e fui para o hospital. Foi detectado Covid, estava com falta de ar, fiz a tomografia e meu pulmão já estava tomado. 

    Na mesma hora, eu internei. No dia seguinte, fiz traqueostomia e intubei. Foram 50 dias intubada. Eu bati o recorde na UTI, mas depois me recuperei. Fui muito bem tratada, saí sem nenhuma sequela, nada. Quando eu fui intubada, eu tinha consciência de que provavelmente iria morrer. Eu costumo dizer que hoje eu sou uma ressuscitada. 

    Pouca gente tem essa experiência de ter consciência da morte. 

    Nos poucos minutos em que eu estava acordada e vi minha radiografia, fiz uma avaliação da minha vida e fiquei satisfeita com o resultado. Pensei que já tinha feito tudo que eu tinha que fazer, fui mais longe do que eu poderia ter imaginado, tenho amigos, tenho família, me realizei profissionalmente. Sou uma mulher realizada. A decisão de não ter filhos foi muito sábia, porque pude me dedicar a muita coisa. Fiz essa retrospectiva e pensei que acertei na vida. Estou em uma idade que muita gente não alcança. Claro que se pudesse viver mais um pouco seria bem gostoso, mas se não der, não deu. 

    Vou te dizer: não tive medo. A gente está tão acostumada com a morte, eu costumo dizer que eu ando com a morte aqui. Só vive bem quem pensa na morte todos os dias. 

    A consciência da morte faz com que você usufrua da vida todos os dias, você usufrui de tudo o que é seu. Você dá valor a tudo o que você conquistou, porque sabe que você não é pra sempre e não vai deixar nada. Tudo o que eu tenho eu usufruo ou reparto. Não adianta ficar acumulando, a gente vai morrer, não sei quando. Eu já podia ter morrido. A vida é tão gostosa, eu curto e acho ela muito boa.” 

    O TRABALHO MAIS IMPORTANTE

    “O câncer de reto foi o assunto ao qual mais me dediquei. Foi também minha tese para poder ser professora. Foi muito respeitada essa tese. Progressivamente, surgiu o uso da radio e da quimioterapia. Hoje, quando a gente diagnostica um câncer de reto, a gente não opera de imediato. Comecei a observar que, em um determinado momento, operava pacientes que, na cirurgia, não havia mais tumor. Mas que coisa, como é que estamos operando doentes que não têm mais tumor? É uma cirurgia enorme. Por mais caprichada que seja, sempre existem alterações fecais, urinárias, sexuais. 

    Aí comecei a observar e surgiu o protocolo que eu chamei de watch and wait

    Câncer de reto baixo, cuja operação seria uma amputação, hoje se faz rádio e quimioterapia. Depois de um mês do fim desse tratamento, a gente reexamina o doente. Vou olhando e esperando até o desaparecimento do tumor. Se voltasse, faria-se a operação. Mas a cirurgia deixou de ser a primeira opção. 

    A gente vai olhando, meditando, se informando, comparando os resultados, revendo os resultados científicos não só pelo prazer de trabalhar, mas para ajudar as pessoas. 

    De início, esse protocolo foi muito criticado, depois passou a ser aceito. Não operar câncer de reto era absurdo. Mas eu continuei insistindo, apresentando em congressos e defendendo que haviam doenças que não precisavam ser operadas. No Ficare [Fórum Internacional de Câncer de Reto], nós apresentamos os resultados deste protocolo e os médicos mais importantes do mundo vieram para ver os nossos pacientes. Eles visitaram nossos consultórios no Hospital das Clínicas, no Hospital Oswaldo Cruz.

    Aceitaram esse protocolo e hoje se faz isso no mundo inteiro. 

    Esse foi o trabalho que eu considero de maior importância na minha vida profissional. Milhares de pessoas deixaram de ser operadas por isso. No consultório eu recebo pacientes que estão sendo seguidos há mais de 20 anos. É muito gratificante.” 

    O AVANÇO DA MEDICINA NÃO PARA NUNCA

    “Em 1974, fui aprender a fazer colonoscopia nos Estados Unidos. Eu estava em Nova York e aprendi com um colonoscopista fabuloso. Eu comprei e trouxe o primeiro colonoscópio do país na mão. Ele despachou o aparelho para Miami, eu fui até lá e o diretor da Olimpus estava me esperando para me entregar o colonoscópio. Foi uma aventura!

    A medicina não se esgota. Quando mais a gente estuda, mais a gente precisa estudar. 

    A gente vai a congressos, encontra outros médicos, troca ideias, é muito bom. Cada dia se aprende com um assistente, com um aluno. Você não para, porque a medicina não para. Os medicamentos mudaram, a quantidade de cirurgias reduziu. Antigamente se operava muitas úlceras. Hoje, se operamos uma úlcera por ano, é muito. Os medicamentos e os procedimentos não invasivos também – existem outras formas de tratar, de prevenir. O mesmo vale para as doenças inflamatórias do intestino, para doença de Crohn.”

    TRATAR DE MUITOS EM VEZ DE CUIDAR DE POUCOS

    “Não era comum não ter filhos. Minha família, meus sogros cobravam demais. ‘Como assim não vai ter filhos?’. Todos queriam ter netos. Minha mãe, por exemplo, já tinha outros netos e dizia que eu precisava deixar algo no mundo. Mas a gente não deixa nada. A gente faz as coisas no momento que a vida acontece. 

    Se estou ajudando os outros com aquilo que faço, cumpri minha missão. 

    Em um momento, eu tive que dar um basta: ‘Chega desse assunto, nós não teremos filhos’. Você tem que decidir o que é bom para você hoje e vai mudando de ideias permanentemente, porque a vida é um movimento. Eu queria me dedicar à minha carreira, e com filhos não daria conta. E foi uma sábia decisão. As pessoas diziam que eu iria me arrepender no futuro, mas será que o futuro chega? Nem sempre. Hoje não é igual ontem e amanhã vai ser muito diferente. Você não pode pensar que o filho vai te dar alguma coisa. Você tem que ser você, se preencher a cada momento. 

    Ter filhos é muito importante, desde que você goste de ter filhos. Eu nunca tive vocação maternal, não nasci pra cuidar de uma criança só. 

    Gosto de tratar de pessoas doentes. A gente cuida, mas não é o responsável. Você cuida naquele momento, dá o melhor que você pode, procurando acertar. Você estuda para evoluir, para dar o melhor. Na maioria das vezes dá certo, mas às vezes não dá. E você sofre demais. Quando a gente perde um doente, a gente passa noites e noites pensando no que poderia ter feito melhor. Os doentes não se dão conta, mas o médico sofre demais por eles.” 

    O FUTURO DA MEDICINA

    “Gostaria de ler que nós descobrimos a cura do câncer. Porque o câncer continua matando. Hoje nós estamos operando pessoas muito jovens, é muita gente que morre e ter um diagnóstico assim deixa marcas. Não tem órgão que não faça falta. A gente faz campanhas, criamos a Associação Brasileira de Prevenção de Câncer de Intestino, a Abrapreci, e já fizemos muitos trabalhos de prevenção ao câncer de estômago. Mas mais importante que prevenir, é chegar à cura. Trabalhando com a bioengenharia genética, a cura vai ocorrer. Com ela, nós vamos viver mais e vamos viver melhor.”

    Confira Também: