Certa vez, o jornalista Igor Leo Rocha teve um problema de foliculite capilar. Foi a vários médicos, passou por diversos tratamentos tópicos, tomou medicamentos e nada funcionava.
Tempos depois, ele se lembrou desse episódio quando uma mulher fez um pedido bem específico à rede de contatos de seu marido, o cirurgião-dentista Arthur Lima.
Ela procurava um dentista negro que tratasse canal. A paciente, que era negra, havia passado por uma péssima experiência de discriminação no consultório de um branco.
“Igor então pensou que, se tivesse encontrado e passado por um especialista em pele negra, teria resolvido logo seu problema, de maneira mais assertiva”, conta Arthur.
“Também notei que tive muita dificuldade de encontrar esse especialista negro em canal, e comecei a rememorar como tinha sido minha turma de formação. Claro: eu era um dos poucos negros.”
Os dois, que já pensavam em empreender fazia algum tempo, tiveram um clique: por que não criar uma plataforma que permitisse a quem quisesse encontrar profissionais de saúde negros?
“Ao mesmo tempo em que poderíamos promover esse serviço para o paciente, também daríamos visibilidade aos profissionais e os ajudaríamos a gerar renda.”
Com a ideia do AfroSaúde em mente, Arthur participou de um desafio de startups organizado pelo Sebrae em Salvador, onde ambos moram, o Sebrae Like a Boss. Igor participou do mesmo evento, mas com uma outra ideia que ele tinha, de um negócio relacionado à coleta seletiva e economia circular.
“E o AfroSaúde, sem plano de negócios, modelo de receita, nada disso, ficou em terceiro lugar, entre as 18 startups que participaram”, lembra Igor. “Foi o primeiro impulso. Vimos que tínhamos uma boa ideia, não era maluquice nossa.”
Além disso, o AfroSaúde juntava duas vontades do casal: empreender e empreender com propósito. “Precisava ser algo que fizesse sentido não só para nós, mas para todo mundo”, diz Igor. “E isso fez total sentido.”
Na pesquisa para o negócio, denúncias de racismo e violência
Depois da injeção de ânimo e da visibilidade que vieram com o evento do Sebrae, Arthur ganhou uma bolsa para um curso para tirar uma startup do papel. Como parte da validação do negócio, fizeram questionários que espalharam em redes sociais para entender se aquilo era, de fato, uma dor.
“O curso frisava muito na história de não esconder a ideia com medo de alguém roubá-la. Como a gente precisava entender se esse produto fazia sentido, se as pessoas o utilizariam, criamos um Google Forms para ouvir pacientes e profissionais, sobretudo, no que dizia a respeito à saúde da população negra.”
O questionário trazia perguntas para entender se a pessoa já havia buscado um profissional de saúde negro, de qual especialidade, por que o procurou e se usaria uma plataforma como aquela.
“Reunimos um banco de dados com 1.200 profissionais do Brasil, além de mais de 1.700 pacientes”, conta Arthur.
Os relatos surpreenderam os dois empreendedores. “Descreveram vários casos de discriminação, tanto de pacientes como dos próprios profissionais”, diz.
“Pacientes que não são negros se recusarem a ser atendidos porque a médica estava de trança ou de black power, por exemplo. Uma profissional disse que não conseguiu um emprego em clínica odontológica porque usava turbante. Outro ouviu que precisava ‘ajustar’ o cabelo para poder trabalhar lá.”
O AfroSaúde, mais tarde, passou na seleção da Qintess Ignite Startups, um programa de aceleração em parceria com a Vale do Dendê, holding social que tem por objetivo fomentar o ecossistema de inovação em Salvador.
“Lá, foi nosso segundo impulso: conseguimos, entre outras coisas, já definir o modelo de negócio e criar um pitch para apresentar a ideia”, diz Igor. No começo do ano, a AfroSaúde foi selecionada pelo Google para receber um investimento do Black Founders Fund. O aporte está sendo usado na tecnologia do produto.
Uma plataforma que conecta e oferece gestão
Hoje, a plataforma conta com 906 profissionais negros cadastrados, em mais de 30 áreas de atuação, de dermatologia a nutrição, passando por psicologia e até constelação familiar e terapias integrativas.
Além de conectar os profissionais negros a pacientes que queiram ser atendidos por eles, o AfroSaúde é um consultório digital. A plataforma possibilita agendamento de consulta e telemedicina, além de disponibilizar um módulo de pagamento.
“Muitos profissionais de saúde mental, que compõem mais de 50% da nossa base, estão atendendo online sem estrutura nenhuma, pelo WhatsApp ou pelo Zoom”, conta Igor.
“No AfroSaúde, ele pode centralizar todo seu consultório, fazer prescrição, pedir exame, ter um prontuário eletrônico, enfim, todo o sistema de gestão, sem pagar por isso”, afirma.
A plataforma é gratuita também para usuários, que pagam apenas os preços que os profissionais pedem. A startup é monetizada com um percentual desse pagamento das consultas dos profissionais, de 20%.
Os sócios estão agora formatando um modelo de negócios B2B, para oferta de serviços de saúde para empresas. “Fomos procurados por algumas companhias e queremos vender esse pacote de consultas com diversas especialidades para elas”, diz Igor.
Na última semana, o AfroSaúde abriu cadastramento para profissionais negros e negras para criarem gratuitamente seus perfis no app.afrosaude.com.br.
O aplicativo foi lançado recentemente no Google Play, para Android, e oferece agora todos os serviços na palma da mão.
O problema da invisibilidade da saúde negra
Quando estruturavam o AfroSaúde, Arthur e Igor descobriram outro problema. “Lembrei que, em minha formação saúde como um todo, não se aborda de maneira aprofundada sobre saúde da população negra”, conta Arthur. Ela tem, como explica o profissional, questões específicas.
“A dermatologia, por exemplo, carece de fotos de como as lesões se comportam na pele negra. A psicologia também tem especificidades. E fui descobrindo como não só a minha, mas a formação de outros profissionais falhou nesse sentido.”
No ano passado, para testar se as pessoas pagariam por produtos da AfroSaúde, criaram uma comunidade em uma plataforma de conteúdos online, e ofertavam aulas ao vivo com especialistas diversos.
“Mediante uma assinatura, todo mês, a gente trazia um especialista que falava sobre psicologia antirracista, nutrição, finanças, marketing”, diz Arthur.
Recentemente, eles lançaram o curso online Raça, Gênero e as Implicações na Saúde, dividido em 12 módulos e ministrado pela professora Karine Santana, da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. Arthur e Igor querem, no futuro, ampliar esse braço educacional.
“O que nós fazemos é usar a tecnologia para impulsionar a diversidade no setor da saúde. Todo mundo fala sobre diversidade, mas ninguém se atentou a esse recorte na saúde”, diz Arthur.
Entre os planos, estão o de usar os dados coletados na plataforma para mapear, por exemplo, quais são as principais comorbidades que as pessoas têm relatado. “Isso vai nos ajudar a desenvolver outros projetos”, afirma Igor.
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